Foi a mais importante participação portuguesa na Berlinale. “Duas Vezes João Liberada” estreou mundialmente na nova seção competitiva do festival, "Perspectives", dedicada a primeiras obras e poderá alcançar um prémio no próximo sábado à noite.
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Primeira longa-metragem de Paula Tomás Marques, que produziu o filme de forma independente com Cristiana Forte, trata-se de um filme dentro de outro filme, sobre a rodagem de uma biografia de Liberada, uma dissidente de género perseguida pela Inquisição portuguesa no século XVIII. Obra experimental, que dialoga com os próprios caminhos do cinema, “Duas Vezes João Liberada” está também em disputa pelo Teddy Award, que premeia os melhores filmes Queer de todas as seções do festival.
Ao JN, a produtora recordou o estado de espírito quando foi recebida a notícia da seleção do filme para Berlim. “Foi uma celebração enorme, um pouco agridoce, por causa da situação política atual na Alemanha”, disse-nos. “Já tínhamos pensado nesta possibilidade e ficámos um pouco assustadas. Não é o timing perfeito, mas é ótimo, porque é incrível o nosso filme, com todas as limitações económicas que teve e que continua a ter, estar em Berlim.”
A produtora conclui: “Espero que possa mudar as nossas carreiras e nos dê oportunidades para fazer outras coisas, de uma forma mais digna e a pagar melhor às pessoas. Abriu-se uma porta. Como produtoras independentes, e todos os dias estarmos a dedicar um pouco das nossas vidas a isto, foi uma notícia maravilhosa.”
A realizadora Paula Tomás Marques junta-se à conversa. “Mesmo pela questão política, foi bom estar cá. Houve debates muito importantes, conhecemos outros movimentos, como o Movimento pela Palestina. Houve várias frentes muito importantes para nos juntarmos. Foi importante, para perceber como nos sentíamos, o que podíamos e o que não podíamos fazer, como é que nos afeta ou não, o que podemos dar, consoante a nossa posição e o país de onde vimos. Foi muito importante vir na lógica do vimos para o debate.”
Paula Tomás Marques recorda-nos como é que o filme foi concebido. “Este filme teve muitas fases. Esteve para ser uma curta-metragem, o “When We Dead Awakening” e o “Dildotectónica” foram feitos durante o processo desta longa-metragem. São um bocado filhos da longa. Mesmo esta longa tem outras versões. Mesmo quando fomos para a rodagem sabíamos que ia ser uma curta grande, mas depois percebemos que de facto a estrutura era de uma longa e que fazia sentido fazer uma longa, tínhamos material para isso. Tudo muda quando é uma longa-metragem.”
A realizadora fala-nos também da falta de apoios para vir a Berlim. “Quando começaram a chegar os protocolos de Berlim, eramos só nós, como é que iriamos gerir tudo. Queríamos trazer as pessoas e não tínhamos dinheiro. Tínhamos de pedir o apoio do ICA, mas que só vem depois. Nós não temos dinheiro e foi a Gulbenkian que nos deu algum para podermos trazer as pessoas. O ICA só dá o dinheiro depois, mas pensa que toda a gente em uma empresa e tem meios para avançar. Há outras pessoas como nós, mas nas curtas, longas sem produtora é mais raro.”
No seguimento destes desabafos, Paula Tomás Marques confidencia-nos: “ Eu vou ser muito sincera. Pensei muitas vezes em parar de fazer cinema. É uma coisa que temos vindo a discutir. Não está a ser sustentável fazer cinema em Portugal. Não ganhando o ICA, andamos a fazer sempre mantas de retalhos de pequenos apoios, é muito frustrante. Sentimos que é um bocado ingrato e que não podemos dar o que poderíamos, a fazer filmes. Para pagar as contas não é isto.”
A realizadora estende este desespero a toda uma geração. “Os nossos colegas que estão a fazer cinema estão quase todos numa situação igual. Trabalham em cafés ou em outras coisas para poderem pagar as contar, pra poderem fazer os filmes. Eu tenho muita sorte porque tive uma bolsa da Gulbenkian e estou a dar aulas e estou mais ou menos ligada ao cinema. Mas a maior parte das pessoas não tem essa oportunidade. E em algum momento pensam em desistir.”
Cristiana Forte juntou a sua voz a este grito. “Há pessoas com muito talento que não estão a ter oportunidades de fazer filmes e continuar carreiras. O cinema funciona muito com uma rede de contactos. As pessoas trabalham sempre umas com as outras. É muito difícil entrar. Quando se entra, entra-se. Pensámos muito no que íamos fazer. Íamos deixar de ser piratas? Íamos vender a alma ao diabo. Será que vale a pena?” E continua: “Vamos ter uma entrevista com os franceses e eles vão ficar chocados com a forma como este filme foi feito e como é que as pessoas sobrevivem a trabalhar em cinema e na cultura em geral em Portugal.”
Mas Cristiana Forte termina de uma forma positiva. “Isto agora é uma rede de entreajuda. Nós crescemos juntas, depois junta-se uma, junta-se outra. As pessoas vão ajudando. Somos muito apologistas desta coisa de darmos de volta a quem nos ajuda. Agora é a altura das voltas, isso é muito importante para nós.”