"As Filhas do Fogo", exibido nesta segunda feira em Cannes, antecipa o filme musical do realizador português. "Fallen Leaves", de Aki Kaurismaki, mostra credenciais na corrida à Palma de Ouro.
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Em 2006, Pedro Costa esteve na luta pela Palma de Ouro, com "Juventude em Marcha". Foi a última vez que um filme português esteve em competição aqui em Cannes.
Nesta segunda-feira, Pedro Costa lançou um desafio direto a Thierry Frémaux, ao mostrar "As Filhas do Fogo", o que considera um filme-teste, garantindo que, quando terminar este projeto de filme musical, quer apresenta-lo aqui. Seguramente, em competição. O seu trabalho anterior, "Valentina Varela", esteve até ao último momento em lista de espera para a competição. Ao ver o seu filme recusado, Costa nem sequer pensou em outra secção paralela, indo diretamente para Locarno, onde venceria o Leopardo de Ouro e o prémio de interpretação feminina.
Na fase atual, "As Filhas do Fogo" é um ensaio de nove minutos, em ecrã tripartido, onde três cantoras cabo-verdianas interpretam outros tantos trechos musicais. Com a cumplicidade habitual da câmara-pincel de Leonardo Simões, Pedro Costa antecipa o que poderá ser o seu próximo filme, deixando-nos desde já com aquela "água na boca", incapaz de apagar o fogo estético e visual que se adivinha.
O filme foi exibido fora de competição, numa sessão dupla com o segundo filme de Wang Bing em Cannes 2023. Depois de "Youth", em competição, o chinês assina "Man in Black", uma média metragem experimental, filmada num teatro em Paris, onde um velho compositor chinês se desnuda literalmente, ao mesmo tempo que, tendo como pando de fundo musical a sua própria sinfonia, nos explica como tentou transmitir em notas musicais os traumas vividos durante o período brutal da chamada "revolução cultural" maoista. Um ensaio verdadeiramente extraordinário, que deixou em êxtase a sala Agnès Varda.
Em 2012, precisamente Pedro Costa, também Manoel de Oliveira, e ainda Aki Kaurismaki e Victor Erice realizaram os quatro segmentos de "Centro Histórico", produzido para Guimarães Capital Europeia de Cultura. Onde anos depois, os novos filmes do finlandês e do espanhol estão em Cannes e os dois autores só não se cruzaram no mesmo dia porque Etice, fiel ao seu eremitismo, não veio a Cannes.
A sua "presença" em espírito foi no entanto saudada numa sala cheia, que recebeu a equipa de "Cerrar los Ojos", exibido na seção Cannes Premiere. Primeiro filme que assina depois da sua colaboração com Portugal, o filme é um exemplo de como, na maior simplicidade, se pode assinar uma obra que nos enche os sentidos. O filme acompanha o périplo de um cineasta que não mais fez um filme após o misterioso desaparecimento do ator principal, durante a rodagem do que seria a sua última obra. Um programa de televisão sobre casos por resolver leva-o a uma pista sobre a sua possível presença num asilo religioso, embora completamente desprovido de memória. São mais de três horas que no entanto desejaríamos ver prolongadas no tempo, de tal forma Erice nos transporta para a trama do seu filme.
Quanto a Aki Kaurismaki, não se sabe o que terá mais de fazer se não ganhar finalmente a Palma de Ouro, com o genial "Fallen Leaves". Sublimação do seu estilo habitual, o finlandês mais português de todos os finlandeses - há 33 anos, metade da sua vida, que passa o inverno em Portugal e o verão no seu país - mostra-nos de novo dois seres à margem da sociedade, uma mulher que de início trabalha num grande supermercado e um operário metalúrgico. Após vários outros empregos e um encontro num bar, irão lançar-se numa relação que os poderá salvar. Deliciosa e comovente história de um encontro, o filme permite ainda a Kaurismaki comentários subtis sobre a miséria social e a mais recente guerra que lança seres humanso uns contra os outros. Com a sua estética e a sua filosofia muito peculiares, o seu humor também, Kaurismaki deixa um imenso rasto de esperança, sobre a humanidade e sobre o cinema.