Pedro Sobrado: "Nunca estivemos tão agitados quanto nestes tempos estacionários"
Primeira entrevista depois de ter sido reconduzido na presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional São João, no Porto, até 2023
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Fosse uma entrevista de vida e seria contada a história do professor universitário que no ano 2000 respondeu a um anúncio de jornal para ser assessor do Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto, lá adotou a bíblia ricardopaisiana, lá se revelou como editor e se descobriu como dramaturgista. Vinte anos depois, é afinal uma entrevista ao gestor que é um intelectual.
Pedro Sobrado, 44 anos, acaba de ser reconduzido na presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto. O segundo mandato termina em 2023. Ao JN, faz o balanço do primeiro round, com um centenário e uma pandemia pelo meio, elogia a ministra Graça Fonseca, "provavelmente a ministra da Cultura que mais vezes visitou o TNSJ", e antecipa o futuro deste Teatro Nacional, com dois mapas na frente: o do país e o do mundo. "A partir de abril", garante, "o plano de digressões nacionais e internacionais não tem precedentes".
O Governo acaba de reconduzir o Conselho de administração do TNSJ até 2023. Atendendo às circunstâncias pandémicas, o primeiro mandato foi apenas uma espécie de aquecimento?
O primeiro mandato desta administração está longe de ter sido um estágio. Não nos limitámos a realizar um diagnóstico transversal - estrutura orgânica, pessoas, carreiras, práticas administrativas, estado de conservação dos edifícios - e a promover uma cirúrgica reestruturação interna. Estabelecemos um novo horizonte estratégico, que discutimos internamente e depois tornámos público, e garantimos um financiamento comunitário para, no quadro do centenário do São João, empreender uma urgente renovação infraestrutural e técnica do edifício da Praça da Batalha.
No ínterim, fomos ainda capazes de reforçar o eixo da produção própria, desencadear projetos de cooperação internacional com o alcance daquele que foi estabelecido com Cabo Verde, de criar um Centro Educativo cujo trabalho expande o raio de ação do TNSJ a toda a Área Metropolitana do Porto ou de infundir um novo fôlego ao projeto editorial. Não foi um mandato poucochinho. Para ser franco, o meu receio é de, neste segundo mandato, não estarmos à altura do que foi alcançado no primeiro.
Por que razão o TNSJ, ao contrário de outros equipamentos culturais, optou por ter tão curta presença online durante confinamento?
No primeiro confinamento, a nossa estratégia foi dupla: quanto aos espetáculos, sim, fomos espartanos; em relação a ações educativas e outras manobras com o nosso "elenco quase residente", não poderíamos ter sido mais hiperativos. É importante dizer que, durante a crise pandémica, o nosso Centro Educativo nunca suspendeu a atividade, mas reconfigurou-a quase por completo para as plataformas digitais: artistas e formadores levaram até ao seu termo o trabalho previsto com as escolas do Grande Porto, mesmo sem a almejada apresentação pública, e as sessões dos clubes de teatro continuaram a realizar-se.
Nuno Cardoso e o nosso núcleo de atores desdobraram-se nos canais digitais, promovendo ensaios abertos, leituras, oficinas e até uma insólita "Antígona" em stop motion. Mas devo reconhecer que, no que toca aos espetáculos, tomámos uma decisão que divergiu consideravelmente do que outros teatros fizeram então: transmitimos, em exclusivo, registos de produções do TNSJ, mobilizando objetos videográficos que excedem o estatuto de registo documental e que possuem uma qualidade cinematográfica incontestável. A RTP reconheceu-o e acabou por adquirir os direitos para transmitir um punhado deles. Com alguma tristeza, vi nessa altura serem disponibilizados registos que não faziam qualquer justiça aos espetáculos e desprotegiam o trabalho artístico de encenadores e atores.
Tenho, de resto, reservas em relação ao modo como nesse período se generalizou o acesso gratuito a bens culturais. Foi simpático, claro, porque estávamos todos a viver uma experiência inédita, mas fomentou a ideia perversa de que não precisamos de pagar nada para acedermos a filmes, espetáculos, canções, jornais até. Além disso, sou cético em relação às possibilidades digitais do teatro, que assenta numa coisa tão velha quanto escandalosa: pessoas diante de pessoas a perpetrarem atos.
A coincidência entre a pandemia e o centenário do TNSJ será ingrata, mas ganhou espaço para trabalhar num outro tempo de que parece gostar mais.
Acerta em cheio quando diz que sou a favor de um outro tempo, mais lento, capaz de promover a maturação de projetos. Gosto do velho adágio: "Devagar que tenho pressa." Daniel Innerarity diz que tem um método infalível para detetar preguiçosos numa organização: é quem está mais agitado. Ele garante que, por vezes, o que trabalha lentamente é aquele que está a trabalhar mais, que está a transformar. Estou longe desse ideal, e muitas vezes terei posto o pé no acelerador, com a pressão dos resultados.
Paradoxalmente, a pandemia não favoreceu esse abrandamento. Não sei se alguma vez estivemos tão agitados quanto nestes tempos estacionários: tivemos de reorganizar equipas e meios, gerir os danos provocados pelos cancelamentos, estimar o reforço orçamental de espetáculos reagendados, conciliar as exigências legais e o imperativo ético de proteger artistas e companhias. Houve que desenvolver e implementar um plano de contingência exemplar, ao mesmo tempo que se ensaiavam novas formas de entrega do teatro, pondo os meios digitais ao seu serviço, ou se planeava o futuro próximo, nomeadamente uma obra como aquela que está prestes a começar.
Foi um teste à maturidade de toda a casa. Se as equivalências não se tivessem tornado um anátema, diria que esta experiência deveria conceder aos dirigentes dos teatros equivalência imediata a um MBA.
Que abalo provocou a covid-19 na dinâmica prevista para o centenário?
Agora já posso dizer que abomino efemérides. [risos] O calendário cultural e a vida pública estão enjoativamente marcados pelas grandes comemorações. Estou convencido de que a valorização das efemérides é apenas um sintoma do "presentismo" e tem como reverso uma cultura do esquecimento e da amnésia histórica. Quando desencantámos a ideia do centenário, nunca intencionámos um programa autocelebratório, uma festa permanente.
Em rigor, o centenário é uma ferramenta de trabalho, aquela que estava à mão. Tratou-se de produzir um choque térmico interno, renovar a atenção pública sobre o São João e garantir um financiamento extra-Orçamento de Estado que permitisse preparar o futuro desta casa. Refiro-me ao projeto de renovação do parque técnico do TNSJ, consideravelmente desatualizado, e a uma empreitada de reabilitação do interior do edifício que envolverá a modernização da estrutura de palco e intervenções muito relevantes em matéria de segurança contra incêndios, climatização e eficiência energética, passando pela resolução de patologias estruturais.
É evidente que a programação artística tão agilmente desenhada pelo Nuno Cardoso sofreu um sério revés, mas nem tudo foi perdido. Algumas ações do centenário transbordaram também para o final de 2021, coincidindo com a reabertura do edifício após a obra e a estreia de uma nova produção.
O programa de ação do centenário é largamente financiado por fundos comunitários. Que importância tem os fundos para a cultura?
É fundamental que, no próximo quadro comunitário, se quebrem as dificuldades de acesso de projetos artísticos estruturantes a fundos comunitários. Fazer depender financiamentos europeus para a cultura e as artes do aumento do número de dormidas, como sucede agora, é difícil de compreender... O setor não pode passar ao lado daqueles que são os grandes instrumentos de apoio ao desenvolvimento do país.
Somando a pandemia e as obras, o TNSJ ficará encerrado quanto tempo?
Se contarmos a partir do dia em que foi decretado o confinamento geral que se mantém em vigor, o São João estará encerrado nove meses, sensivelmente. Estaremos a operar mais intensivamente no Teatro Carlos Alberto (TeCA) e também no Mosteiro de São Bento da Vitória, mas não só. O nosso plano de digressões nacionais e internacionais a partir de abril não tem precedentes.
No último ano, o TNSJ esteve na Roménia e em Cabo Verde. A prometida reativação do projeto internacional, nomeadamente com a integração do TNSJ na UTE (União de Teatros da Europa), seguirá para onde?
Estamos a investir em parcerias de longo curso, relações de cooperação que evoluam e adquiram um alcance que não se circunscreva à compra/venda de espetáculos. Na Roménia, tomámos parte no Festival da União dos Teatros da Europa e começámos logo a trabalhar com Gábor Tompa, um herdeiro da fecunda tradição teatral mitteleuropeia, num projeto de produção própria, com os nossos atores, que estreia neste 7 de março.
Em Cabo Verde, apresentámos espetáculos como primeiro gesto de cooperação, mas o que esteve no nosso horizonte desde o início foi sempre outra coisa: a gestação de intercâmbios e projetos artísticos pensados de raiz, como a "Kastro Kriola", que o Nuno Cardoso está neste momento a dirigir e que envolve um elenco de atores cabo-verdianos. Este programa de cooperação ganhará proximamente outras feições, nomeadamente ao nível da formação e da cedência de um lote significativo de equipamento técnico.
A relação que criámos com o Ministério da Cultura cabo-verdiano suscitou rapidamente o interesse de outros países de língua oficial portuguesa, mas a pandemia veio interromper esse diálogo nascente. Não poderemos clonar indefinidamente este modelo de cooperação, porque pomos nele muito de nós e a nossa capacidade não é ilimitada. Mas gostaríamos de contribuir para que a lusofonia não seja apenas um primeiro prato de jantares oficiais.
O que esperar, na prática, da integração do TNSJ na UTE?
A UTE não pode ser apenas um pin que colocamos na lapela do blazer ou um selo na barra de logotipos, para conferir respeitabilidade. O Nuno Cardoso está especialmente empenhado e envolvido na renovação da União dos Teatros da Europa e faz hoje parte da entourage do presidente, Gábor Tompa. Essa renovação passa pela adesão de novos membros no curto prazo e pela obtenção de fundos comunitários para o desenvolvimento concertado de projetos artísticos
comuns.
Em todo o caso, a nossa participação na UTE começou já a dar novos frutos: para além da apresentação de "A Morte de Danton" no renascido Festival da União dos Teatros da Europa, encetámos uma parceria com um outro teatro membro - o Teatro Nacional do Luxemburgo -, que deu já origem a um projeto com uma equipa artística de lusodescendentes e que será apresentado no Porto lá para o final do ano.
Quando se fala no projeto de internacionalização do TNSJ fala-se sempre, também, do festival PONTI (Porto. Natal. Teatro. Internacional.). Não estará na altura de fazer o desmame desse tempo áureo do teatro e pensar noutros caminhos para chegar ao mesmo fim? Criar memórias novas?
O PoNTI teve poucas edições, mas deixou uma marca tão indelével na casa e na memória dos espectadores formados no final da década de noventa, entre os quais me incluo, que, volta e meia, é tema de conversa entre mim e o Nuno Cardoso. Não excluiríamos liminarmente a recuperação do festival, ainda que fosse para fazer dele uma outra coisa. A questão que se coloca, porém, não é apenas financeira, mas a da sua oportunidade. O São João é hoje parceiro ou coprodutor de vários festivais de artes performativas que representam parte significativa da nossa programação anual, e um festival só faz sentido enquanto exceção à regra, como um fator de disrupção de uma atividade regular. A generalização da lógica eventful dos festivais representa riscos. Parece-me, aliás, uma ingenuidade tomar a festivalização como uma expressão de vitalidade.
São João não merece ser discriminado no financiamento
O TNSJ é o Teatro Nacional com o orçamento mais baixo, mas enquanto Tiago Rodrigues, do D. Maria II, em Lisboa, reclama mais verba, o Pedro Sobrado elogia o Governo por ter recolocado o financiamento no nível de 2010. Isso explica a disparidade entre os teatros?
Antes de mais, uma correção: as indemnizações compensatórias dos dois Teatros Nacionais são similares, cerca de 5 milhões de euros. A dotação difere no que toca ao Fundo de Fomento Cultural, através do qual tanto o São João como o D. Maria II têm sido reforçados orçamentalmente nos últimos anos. Se, no início do nosso mandato, manifestei o meu regozijo por o Governo ter reconduzido o São João ao patamar de financiamento em que se encontrava em 2010, isso deveu-se a uma razão bastante prosaica: um milhão de euros.
Nos ditos anos da austeridade, o TNSJ sofreu um corte orçamental tão violento que, não fosse o nervo de quem aqui esteve e a solidariedade orgânica da equipa, a instituição ter-se-ia esboroado. Mas, na altura, o impacto foi terrível, com os níveis da produção própria a atingir mínimos históricos, numa casa pensada e vocacionada para a produção artística. Nunca estamos plenamente satisfeitos com o orçamento, até porque há tanto por fazer, mas, na altura, não poderia deixar de me regozijar com o reposicionamento orçamental do São João e com o que ele significou em termos de dignificação da relação do Estado com os seus teatros.
Mas o ex-ministro Luís Filipe Castro Mendes concedeu um reforço orçamental muito expressivo ao D. Maria II, em 2017.
Quero deixar claro que cada cêntimo atribuído ao D. Maria II é não só merecido como diariamente justificado pelo trabalho que os nossos colegas vêm desenvolvendo. O que não é merecido é que o São João seja negativamente discriminado ao nível do financiamento público, até porque é esse financiamento e a sua estabilização que incentivam o investimento privado.
Mas não vou fazer uma bravata e dizer, com cerrada pronúncia tripeira, que o Norte não aceita essa discriminação centralista. A história de inteligência, talento, rigor, exigência e maturidade que foi a deste Teatro Nacional nos últimos 30 anos é persuasiva. É importante, contudo, dizer que a ministra Graça Fonseca é favorável a essa paridade orçamental e que a vem promovendo de facto, corrigindo paulatinamente a discrepância de dotações.
Qual é a diferença, hoje?
Inferior a 400 mil euros.
O que reclamou, por exemplo, para o contrato-programa para 2021-2023?
A elaboração de um novo contrato-programa encontra-se numa fase adiantada, mas a negociação com as tutelas está ainda em curso. Por essa razão, prefiro manter reserva sobre o assunto.
A raspadinha do Património Cultural serve para colmatar o quase inexistente mecenato em Portugal? Tem alguma estratégia para seduzir novos mecenas?
Nada pode colmatar propriamente o vazio mecenático, porque não se trata apenas de uma questão de dinheiro, mas de um investimento que deve resultar da empatia com um projeto e do reconhecimento da sua pertinência. No São João, conseguimos, no contexto das comemorações do centenário, garantir o nosso primeiro apoio mecenático dos últimos dez anos e estamos na expectativa de que BPI e Fundação "la Caixa" o venham a renovar em 2021. Admito que haja aspetos a rever no atual regime do mecenato cultural, com o objetivo de o esclarecer e tornar mais atrativo.
Mas não conheço fórmulas mágicas. Ao longo dos anos, aprendi que, quando o investimento do Estado na cultura é expressivo e consequente, os mecenas tendem a comparecer e a acompanhar; assim que o Estado recua ou permite que paire uma nuvem de incerteza sobre os projetos e as instituições culturais, eles retraem-se.
Ao TNSJ pertencem, também, o Teatro Carlos Alberto e o Mosteiro de São Bento da Vitória. A dotação não deveria contemplar a responsabilidade patrimonial?
Sim. Estes três edifícios permitiram ao TNSJ o desenvolvimento de uma identidade polimórfica, mas exigem uma atenção permanente. Os encargos são pesados em termos energéticos, de manutenção e de vigilância. As fachadas do São João, por exemplo, exigem intervenções cirúrgicas regulares, para não corrermos o risco de virmos a enfaixar de novo o edifício, como esteve durante vários anos, antes da obra de 2014.
Outro exemplo: no TeCA, estamos a executar um projeto de eficiência energética comparticipado por fundos comunitários que, entre outras coisas, envolve a instalação de painéis fotovoltaicos na cobertura. Mas, para que isso seja possível, precisamos de fazer uma intervenção cujo custo equivale ao orçamento de uma produção do TNSJ.
Há sempre um pouco a sensação de que há um imenso espólio tragicamente inacessível nas várias casas do São João. Como os manuais de leitura, por exemplo. Por outro lado, usar o Mosteiro sobretudo como espaço de trabalho parece uma enorme excentricidade.
O que é tragicamente inacessível são os espetáculos que nos marcaram e comoveram - e dos quais sobra tão pouco, afinal. Vinte anos de manuais de leitura foram disponibilizados no Dia Mundial do Teatro de 2020, tudo à distância de um clique. De resto, programas, fotografias de cena, materiais promocionais produzidos desde 1992 encontram-se disponíveis no nosso arquivo online, o Cinfo, uma ferramenta preciosa para artistas, estudantes de teatro e investigadores de artes cénicas.
O Mosteiro continua a ser um local de apresentação de espetáculos e estamos a estudar a possibilidade de voltar a realizar concertos naquele magnífico claustro nobre. Mas não faria sentido fazer dele o espaço de uma programação tão intensiva quanto o São João e o TeCA: não temos equipa nem recursos para tanto, e não me parece que a agenda cultural do Porto, tal como a conhecíamos até à pandemia, o requeira.
Encaramos o Mosteiro sobretudo como um lugar que está antes e depois do espetáculo. Por um lado, é um espaço privilegiado de criação e experimentação, para nós e para tantas companhias: dispomos ali das duas melhores salas de ensaio do TNSJ. Por outro lado, o Mosteiro é o lugar da reflexão e da memória, porque é lá que se encontra instalado o nosso Centro de Documentação, uma biblioteca especializada em artes performativas, bem como a exposição permanente "Noites Brancas", uma travessia por vários dos territórios cénicos que este teatro inventou.
Que espaço programático está hoje reservado para o TeCA? É o território em que o teatro nacional dá palco às companhias independentes?
As companhias independentes apresentam-se tanto no São João como no TeCA, ou mesmo no Mosteiro. Nenhuma sala lhes está vedada, pelo contrário. Mas, se o São João é o espaço preferencial das produções próprias e de espetáculos que pedem ou suportam uma carreira mais longa, o TeCA está mais vocacionado para a experimentação e, nessa medida, para projetos de carreira mais curta. Desde 2018, tornou-se a residência do Centro Educativo, o que favoreceu a caracterização daquele espaço. É um teatro habitado diariamente por pessoas de todas as idades e proveniências.
Da verba proveniente do Orçamento do Estado, quanto sobra para a criação artística?
O ano de 2021 é atípico porque tivemos de mobilizar recursos para a obra de reabilitação a que o São João será submetido entre abril e outubro. Mas, nos últimos anos, ronda 1,2 milhões, se excluirmos todo o investimento que é feito na promoção dos espetáculos. A rubrica que, neste plano, mais progrediu desde 2019 diz respeito à contratação de atores, que terá crescido entre 30% e 40% face ao que sucedia em 2015 ou 2016.
Terá que ver, também, com a "companhia quase residente", que tem hoje seis elementos. Há planos para alargar esta companhia a curto prazo?
Desejamos que, até ao final deste novo mandato, um núcleo de atores contratado anualmente possa crescer, sendo que iremos sempre contratar atores para projetos específicos. Como é sabido, não temos a ambição de uma companhia residente no sentido clássico. Mas, para um teatro que tem uma política de repertório e faz uma aposta estratégica na itinerância, é fundamental dispor de uma equipa de atores estável. Trata-se também de uma questão ética, porque garante alguma estabilidade a artistas cuja intermitência laboral se torna tantas vezes aflitiva.
Resulta claro, para si, desta experiência inicial, que uma equipa de atores tão pequena a trabalhar numa sucessão de peças com um intervalo de tempo relativamente curto, gerar alguma confusão, no sentido de transportamos a personagem da peça anterior para a peça seguinte?
O risco que refere é, na verdade, um dos traços constitutivos da experiência teatral. Durante este segundo confinamento, editámos um livro da Empilhadora - "Palco Assombrado", de Marvin Carlson - que descreve isso. Nos teatros de repertório, o corpo dos atores é um palimpsesto, porque a cada novo espetáculo ele evoca fantasmas de outras personagens, desencadeando ecos imprevistos de outros espetáculos. Todos os espetáculos de teatro poderiam chamar-se "Espectros", como a peça de Ibsen.
A ministra Graça Fonseca, é presença assídua no TNSJ. Essa proximidade reflete-se na agilização dos problemas do Teatro?
Graça Fonseca é, muito provavelmente, a ministra da cultura que mais vezes visitou o TNSJ nos últimos vinte anos. De resto, está sempre à distância de uma chamada telefónica ou mesmo de uma SMS. Nem sempre as nossas pretensões são atendidas ou, pelo menos, atendidas com a prontidão que desejaríamos, mas quem passa pela experiência de administrar estas casas sabe bem quão preciosa pode ser essa proximidade.
Também é benevolente na avaliação que faz tutela face à precariedade e à sobrevivência do tecido artístico neste tempo de pandemia?
Não me compete a mim avaliar, ou sequer defender, a atuação do Ministério da Cultura. Mas gostaria de chamar a atenção para um facto de que talvez não se tenha plena consciência: nesta crise pandémica, os teatros nacionais, como outros teatros públicos, tiveram um papel importante na proteção do tecido artístico, papel que tem sido, de resto, reconhecido. Promovemos o reagendamento de muitos projetos, o seu reforço orçamental e a oportuna transferência de verbas para artistas e estruturas de produção. Isso não foi feito de moto próprio, ou à revelia de qualquer autoridade. Houve uma orientação política nesse sentido e foi criado um enquadramento legislativo específico que permitiu apoiar o tecido artístico em termos que, antes, seriam juridicamente inviáveis. Dito isto, estou convencido de que temos a enorme responsabilidade de reerguer um setor severamente atingido pela crise e que essa responsabilidade não se pode restringir ao Ministério da Cultura.
Tem posição formada sobre o estatuto do intermitente?
Tivemos conhecimento de uma versão de trabalho e fomos chamados a dar contributos. A crise que se abateu violentamente sobre a área da cultura e os trabalhadores da cultura teve, pelo menos, a virtude de tornar urgente a criação do estatuto do artista e dos profissionais da cultura. É uma novela que se arrastou por duas décadas e que precisa de conhecer agora um final feliz. A implementação deste estatuto é um passo estratégico decisivo, tal como a regulamentação da rede de teatros e cine-teatros que está em cima da mesa.
Em outubro, concluídas as obras, o TNSJ reapresenta-se. O que significa a definição do pedagogo Antoine Vitez - "Um teatro de elite para todos" - de que costuma socorrer-se?
Não é uma fórmula catchy apenas. Significa que o São João tem de cultivar a exigência - que é, antes de mais, auto-exigência técnica, artística e administrativa - e alimentar sem condescendência uma preocupação com a comunicabilidade dos seus projetos, multiplicando os acessos às obras e aos autores, desenvolvendo uma pedagogia dos públicos.
Significa também que o São João não está confinado à Praça da Batalha e que chega, de múltiplas formas, ao país e, em especial, do Norte. Fazemo-lo através de digressões e projetos educativos que chegam a Barcelos ou Chaves, mas também do investimento realizado em coproduções com as companhias ou do desenvolvimento artístico de atores, encenadores, técnicos... É virtualmente impossível estimar a riqueza gerada pelo investimento que tem sido realizado neste Teatro Nacional.
Apesar da partilha de projetos e festivais, o Teatro Nacional e o Teatro Municipal do Porto (TMP) parecem hoje concorrentes. São? Que concertação estratégica deveria haver?
Disputamos saudavelmente o escasso espaço mediático disponível para a atividade cultural no Porto, mas dificilmente poderemos classificar os dois teatros como concorrentes, porque têm naturezas e vocações distintas. O TMP é um teatro de programação, com uma forte aposta na dança, o TNSJ é primacialmente uma estrutura de criação artística e a sua ênfase programática recairá sempre no teatro, ainda que não exclua as outras artes cénicas.
A reativação do Cinema Batalha é uma boa notícia para o São João?
Não conheço o programa que está a ser preparado, mas a reabilitação e a reativação do Cinema Batalha são uma excelente notícia para o São João. Há uns tempos, encontrei na documentação de Ricardo Pais um memorando de 96 ou 97 em que se equacionava a possibilidade de se fazer da Batalha um espécie de Broadway do Porto, com o São João, o Cinema Batalha e a Casa da Música, que ocuparia o Palácio da Batalha, onde funcionavam na altura os Correios... O futuro tomou outra direção, como sabemos, mas a reabertura do cinema é-nos muito favorável porque contribuirá para alterar o ecossistema da Praça da Batalha. Insistimos muito na índole nacional e na vocação internacional, mas orgulhamo-nos de pertencer a este Porto.
Apesar de o TNSJ ter uma taxa de ocupação a rondar os 80%, dá a ideia de que vive essencialmente do seu público "residente", fiel, sempre o mesmo, que não se renova nem se alarga. A criação de novos públicos é um discurso anacrónico?
Pelo contrário. No quadro do centenário, decidimos avançar com um estudo de públicos de base científica que a Universidade do Minho se encontra a desenvolver e cujo calendário a pandemia nos obrigou a reformular. Será uma ferramenta preciosa não apenas para conhecer os perfis do nosso público, mas também para identificar públicos potenciais e renovar estratégias para a sua
captação e formação. Mas não é verdade que o público do TNSJ não se renova ou alarga: uma parte muito significativa dos espectadores do São João são alunos do terceiro ciclo e do ensino secundário. Isso não quer dizer que não estimemos a nossa grey audience, pelo contrário. Mas o São João não sobreviveria sem uma ampla base social de apoio, como se diz dos partidos, porque os espetáculos de produção própria não se limitam a duas récitas, mas permanecem várias semanas em cena. Seja como for, o estudo que encomendámos reveste-se de grande importância e irá ajudar-nos a sistematizar e a renovar o nosso trabalho com os públicos.
Num país pós-pandemia, o que é que do passado crê que voltará a ser futuro?
Nas discussões sobre a pós-pandemia, sinto grande dificuldade em subscrever vaticínios extremados como "nada voltará a ser como dantes" ou "quinze dias depois, voltaremos todos ao mesmo". Lembro-me sempre da resposta que, no final da década de sessenta, o primeiro-ministro chinês deu a Henry Kissinger quando este lhe perguntou que importância atribuía à Revolução Francesa. A resposta é típica de uma civilização antiquíssima: "Ainda é cedo para saber." O teatro também é muito antigo, sobreviveu a toda a sorte de coisas, mas estará sempre aqui para nos dizer que viver é conviver.