O realizador alemão Philipp Hartmann falou com o JN sobre o seu filme "66 Cinemas"
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Documentarista alemão, com uma obra com mais de duas dezenas de obras, Philipp Hartamnn percorreu vinte mil quilómetros com um desses filmes e realizou "66 Cinemas", sobre os outros tantos espaços onde o seu filme foi projetado, desde cinemas tradicionais até bares e salas improvisadas.
O filme traça um retrato da situação atual do espetáculo cinematográfico. Depois de uma exibição no Indie Lisboa, deveria ter estreado na semana passada em sala. Mas o encerramento obrigatório aos fins de semana levou à passagem direta deste filme para a plataforma VOD da Zero em Comportamento.
Tem mantido contacto com alguns destes 66 cinemas?
Sim, com muitos. Trocámos e-mails, sobretudo agora com a pandemia, quando tiveram todos de fechar. Receio que nem todos consigam sobreviver a esta crise. Mas em todos os meus filmes tento manter o contacto com os meus protagonistas. Fazer cinema não é só "roubar a imagem" de alguém, é continuar a conviver com essas pessoas.
Fez vinte mil quilómetros para fazer este filme. O orçamento, em viagens e estadia, não disparou?
Felizmente. não. Aproveitei a viagem com o meu filme anterior, porque a ideia inicial foi apresentar esse outro filme. Em muitos casos os cinemas pagaram-me as viagens e tentei fazer sempre distâncias curtas. Organizei estes 66 cinemas de forma a não fazer grandes viagens de norte a sul da Alemanha.
Voltou a alguns desses locais para mostrar agora o "66 Cinemas"?
Quase todos me convidaram para voltar lá e mostrar esse novo filme, sobretudo os que aparecem mais. Até era um orgulho para eles. Em muitos casos este regresso foi como um reencontro de amigos. Foi um fecho de ciclo, mostrar o filme onde ele foi feito. Gosto de devolver o filme às pessoas que contribuíram.
No seu filme mostra locais que exibem filmes onde se pode votar se a sessão é para fumadores ou não fumadores e em que é possível encomendar uma sanduíche e uma cerveja durante a projeção. Enquanto espetador, mas também enquanto cineasta, qual é a maneira ideal de ver um filme?
Não há um local ideal para ver um filme. Para cada filme, para cada público, há uma situação que combina com o momento. Foi por isso que fiz questão de incluir esses outros lugares, que não são literalmente chamados de cinemas. Esse vai ser também um dos futuros do cinema, esses outros espaços, organizados pelos próprios cinéfilos.
Como por exemplo mostrar um filme num bar...
Mostrar um filme num bar pode ser mau para um filme, porque falta o ambiente de concentração e de perfeição tecnológica, com uma boa projeção e um som ótimo, mas por outro lado atrai pessoas que nunca iriam ver esse filme ao cinema.
Também mostra galerias, mais viradas para as artes plásticas...
Nesses espaços as pessoas têm outras expectativas, olhando para um filme como uma obra de arte. Não esperam que um filme lhes ensine alguma coisa ou lhes transmita uma mensagem clara ou uma narrativa linear, olham para um filme apenas com o prazer de ver e de se entregar ao filme.
No Festival de Berlim havia, nos anos de 1990, salas com um espaço fechado para fumadores...
Agora já não há cinemas desses. Mas eu, como fumador, fui à procura de um desses lugares onde se pode fumar. Há pessoas que gostam de ver um filme e comer pipocas, outras de beber cerveja, e outras de fumar. Pipoca, cigarro e cerveja são várias faces da mesma medalha.
O filme testemunha também a passagem da película para o digital. Ainda há muitos cinemas na Alemanha que projetam filmes em 35mm?
Já não há muitos, por uma questão de custos, de espaço e por causa da cabina de projeção. E também já começam a escassear os projecionistas. Há alguns cinemas que ainda guardam os projetores antigos e usam-nos por vezes, mas são na maior parte dos casos os cinemas municipais, com apoio local e a missão de manter a herança analógica.
Qual foi a sua experiência de trabalhar com película?
Ainda aprendi a trabalhar com filme. Montei uma curta-metragem numa moviola e ainda filmo muito em Super 8 e 16mm e tento incluir material desse nos meus filmes, embora depois digitalize tudo e monte em digital. A película implica uma outra forma de trabalhar. Em 16mm, filmar um minuto custa 100 ou 150 euros. Com o digital sabe-se que podemos filmar horas e horas e não custa nada.
O filme que foi exibir nos 66 cinemas era afinal sobre que tema? Praticamente nunca vemos imagens desse seu filme anterior.
Vemos um bocadinho no início. Chamava-se "O Tempo Passa Como um Leão Que Ruge". É um filme sobre o tempo, que fiz exatamente na metade estatística da minha vida. Mas não me interessou mostrar mais desse filme porque "66 Cinemas" é sobre esses os cinemas e não sobre mim.
O filme tem uma homenagem ao Wim Wenders e ao filme "Ao Correr do Tempo"...
O Wim Wenders foi um dos meus professores, na escola de Belas Artes. E esse filme é também uma viagem por vários cinemas. Queria voltar a vê-lo e foi o que fiz, numa das minhas viagens de comboio. Decidi filmar-me a ver o filme no meu computador, mas de repente, por destino ou coincidência, há outra "história" que se passa no enquadramento, com uma mãe a brincar com o filho. Nesse momento, no filme do Wenders, havia uma cena com crianças. É essa a magia do cinema.
Como artista, como é que viveu o período mais complicado do confinamento?
Economicamente estou bem, porque na Alemanha houve várias ajudas para os artistas independentes. E consegui fazer um filme durante e sobre a pandemia, que estou agora a finalizar, sobre uma orquestra da Bolívia, que faz música instrumental com instrumentos indígenas.
Do que trata então o filme?
Eles chegaram à Alemanha para um concerto que foi cancelado e entretanto a Bolívia fechou as fronteiras e já não conseguiram regressar. Passaram três meses na Alemanha e aproveitaram para gravar algumas músicas. Foi um filme que fizemos juntos, sem dinheiro nenhum, mas com imenso prazer.
Como é que vê a evolução da situação?
O mais difícil não é o que aconteceu na Primavera, mas o que vai acontecer no futuro. Os cineastas dependem das salas de cinema. Temo que num futuro não muito longínquo vários cinemas vão ter problemas ou vão mesmo fechar. As consequências desta pandemia vão acompanhar-nos ainda durante muito tempo.