Deixou de importar se esta foi a sétima ou a décima sétima vez que os Sigur Rós nos visitaram nos seus 22 anos de existência.
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O que é relevante é que a cada nova vez que voltam ficamos mais familiarizados com eles - e com a sua estranha língua islandesa (mas eles também falam em hopelandic, uma espécie de "esperancês" e que é uma língua totalmente inventada. O concerto deles foi o acontecimento do primeiro dia e isso foi unânime.
Como foi? Foi uma coisa parecida com a ideia de paraíso. Com o palco iluminado por néones, deflagrações de strobe e imagens sulfurosas que se desfaziam em veludos no ecrã, criaram um belo efeito de tridimensionalidade e de flutuação que nos prendeu do princípio ao fim do espetáculo. A voz de falsetto supremo de Jónsi continua a arrepiar e o todo foi celeste, elevado, puríssimo, em que entramos e literalmente ficamos para sempre dentro da memória daquele éter.
E Sigur Rós quer dizer o quê?
Conforme quisermos ler, Sigur Rós significa sempre um triunfo: ou quer dizer literalmente a vitória aflorou ou então que é a rosa da vitória. Se quisermos ler tudo junto, como se por exemplo estivéssemos a chamar por alguém, então devemos dizer Sigurrós, que é o nome da irmã mais nova de Jón Bór, o Jónsi, vocalista e fundador do grupo islandês.
Eles são uns tipos estranhos
Jónsi, o vocalista dos Sigur Rós, é um tipo meio estranho (e durante muito tempo não soubemos exatamente se ele é ou não cego de um olho) que toca a guitarra elétrica de forma invulgar. Ataca-a com um arco de cello, e toca-a com violência, a perfurá-la até aos ossos, e no fim o arco fica todo descabelado e Jónsi pinga num esgar. Os outros dois também são estranhos: Goggi às vezes toca o baixo com um pau de baqueta, como na "Afssol" do primeiro disco, e Orri toca bateria e também teclas, o que é invulgar num baterista, mas a maior parte do tempo no palco está a animalizar-se e é ele que controla o motorik de andamento da banda.
O arranque foi morno?
Se tirarmos o concerto dos Sigur Rós da equação, não houve no primeiro dia do Primavera mais nenhuma banda capaz de exaltar o factor "wow!" ou de nos roubar literalmente o coração. Não tem agora a ver com unanimismo, maiorias ou imensas minorias, mas faltou um bocadinho mais de peso ou de poder emocional ao primeiro dia do Primavera Sound.
US Girls e Animal Collective é ao vivo?
A primeira e a última banda do palco Nos assentaram a sua prestação em "música de máquinas" disparada de pré-programas, sem instrumentação executada ali ao vivo. Não é que tenha havido exatamente desânimo ou desconsideração, mas para lá da voz, no caso das Girls do noise-pop (e daquele guitarrista surreal de grande chapéu de vaqueiro branco, que entrou em palco de rompante durante a última magnífica canção "New age thriller"), e da voz e bateria no caso do caldeirão dadaísta e pinball dos Collective, tudo o resto deixa-nos agarrados àquilo que já conhecemos de decalque das canções que estão nos discos.
Quem trouxe o melhor rock?
Num menu maioritário de rock, e de todos os seus psicadelimos e revisionismos pré e pós-punk, houve no primeiro dia duas bandas que sustentaram bem o seu nome: os Deerhunter do Bradford Cox, em concentração espraiada de pós-pop, e os também americanos Parquet Courts, artistas revivalistas que retorcem o rock à dessintonia e que têm canções que tinham tudo para não funcionar mas que, de facto, funcionam. Dentro desta dieta, PC foi se calhar a banda rock favorita de muita gente, apesar da chuvinha e da morrinha de orvalho que tanto ia como vinha enquanto eles continuavam a tocar.
Somos 30 mil
O primeiro dia do Primavera foi recordista, com 30 mil pessoas estimadas pela produção do festival. Crescemos cinco ou dez mil num ano, continuamos a ser intergeracionais e interclassistas, com jovens, maduros e adolescentes todos misturados lado a lado (e até com famílias e crianças dispersas à cata de flores durante o dia. O Parque da Cidade não parece ter perdido a boa navegabilidade que sempre teve, ou o conforto de circulação entre os palcos, mas nota-se que é maior a massa em movimento e que somos mais a ocupar todo o espaço do largo da colina até lá mesmo ao cimo.
As flores na cabeça
Ver mulheres e homens de gerberas, margaridas e vivazes a decorar a cabeça, em bonitas coroas, a apanhar crinas ou postas como tiaras, e sem que seja em pose irónica ou a gozar, é já uma marca com peso icónico no festival, o único que por cá faz isto com flores. Dispersas por muitas cabeças na multidão, ficamos todos com um ar muito mais hippie-indie-chic.
Os estrangeiros entre nós
Alegadamente, estão cá 10 mil pessoas que compraram os bilhetes fora de Portugal. Até pode parecer bacoco ou regional, mas ficamos cheio de inchaço patriótico por os estrangeiros nos preferirem. Percebe-se porquê: temos os bilhetes mais baratos da Europa e a cerveja claramente também. Qual o povo que está em maioria? A julgar por umas vozes que se elevam sempre acima das outras, dir-se-ia que estamos cercados de espanhóis.
Os copos e a ecologia
Este ano, pela primeira vez, não se vê um único copo atirado ao chão - ou se se vê, porque alguém se esqueceu ou o deixou cair, logo ele é apanhado, levado ao bar e trocado por dois euros. Foi uma medida de ecologia inteligente da produção, que trouxe a ideia do zero desperdício lá de fora: bebemos sempre do mesmo copo e no fim da noite vamos entregá-lo e recuperar o dinheiro da caução.