Volume inédito de cartas devolve-nos ao período de juventude do escritor.
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Quase 50 anos nos separam da época em que Miguel Esteves Cardoso, então um jovem estudante universitário a viver em Manchester, escreveu repetidas cartas destinadas ao seu grande amigo Carlos Vilela, morador na lisboeta Vila Berta.
Inéditas todo esse tempo, as missivas voltaram agora de forma inesperada à vida, num volume cujo interesse não pode ser classificado de meramente histórico. Sim, o seu bem identificável (e tantas vezes imitado) estilo de escrita não estava ainda tão apurado, há frequentes arroubos típicos da juventude que o tempo se encarregou de reduzir à sua verdadeira expressão e até uma repetida tendência para a dispersão, própria de quem ainda buscava a sua voz. Mas, pese embora todos esses naturais pecadilhos, já então era visível o fértil imaginário e o domínio seguro da escrita que, uma vez depurados, não tornam minimamente surpreendente o percurso de fôlego que iniciaria poucos anos depois.
Indiferente ao silêncio do destinatário, MEC não deixou de lhe escrever todas as semanas. Antes de mais, porque já então tinha consciência de que a escrita seria o seu destino e, ainda que a ausência de resposta lhe custasse por certo, exercitava-a com o método de um sofista antes de uma qualquer intervenção pública. O resultado dessa experimentação permanente é uma liberdade bastas vezes contagiante, própria de alguém que descobre, com um prazer quase pueril, a capacidade de domar as palavras e encaminhá-las na direçáo certa.
Lendo as cartas, e atentando no grau de empenho que nelas colocava, apercebemo-nos facilmente de que a escrita ajudava o jovem estudante a mitigar os momentos de solidão e a sensação de desterro que se apoderava de si. Excluindo, todavia, os raros momentos de insegurança, estas são cartas de alguém que desde o início se recusou encaixar no rótulo de “estudanteco portuga com um mau domínio do inglês”.
Frequentemente altivo – classifica até de “magistral” um dos livros que acaba de escrever, mesmo correndo o risco de se vir a envergonhar do mesmo pouco depois, como confessa –, consegue, como que por milagre, um equilíbrio precário entre os deveres universitários, o inesperado matrimónio e os excessos da juventude, encontrando na escrita uma argamassa suficientemente sólida capaz de juntar todos esses fragmentos numa mesma massa.