De regresso aos romances com "A Menina Invisível", Rita Cruz elege a tentativa de compreensão da violência como um dos alicerces dos seus livros. "Procuro entendê-la, virá-la do avesso, dissecá-la", explica na primeira parte da entrevista ao "Jornal de Notícias".
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"E se, impotente perante a violência, uma menina conseguisse entrar tão dentro da escuridão do corpo até desaparecer nele?" Assim começou a ganhar forma na mente de Rita Cruz o sucessor de "No País do Silêncio", livro que marcou a sua estreia literária.
Ao contar a história da jovem Alice, a autora procurou dar voz aos invisíveis da sociedade, seres que muitas vezes nos esforçamos por não ver, pese embora a sua omnipresença na sociedade.
"Atrai-me, porque me repugna, a forma como conseguimos conviver tão bem com essa invisibilidade, e tudo o que isto revela sobre a nossa (des)humanidade", confessa.
"A menina invisível" parte de uma situação muito dura com que a protagonista Alice se confronta, mas a narrativa evolui para um tom mais terno e até esperançoso. Vê este romance como uma luta de forças entre o Bem e o Mal?
Custa-me dizer que não, porque entendo da pergunta que o leu assim e não quero apropriar-me do que o romance poderá dizer-lhe, ou a outro leitor que assim o veja. Mas a haver no livro uma luta de forças, para mim, será talvez entre o que queremos que a vida seja e o que ela acaba por ser; entre o que sonhamos na infância e o que encontramos na vida adulta; entre os planos que fazemos e o que deles sobra quando a realidade nos obriga a tomar outros caminhos; entre o que a sociedade nos impõe e aquilo que afinal somos ou queremos ser. O tom mais terno, menos violento, e talvez esperançoso que vai aparecendo no final corresponde à consciencialização de que a derrota nesta luta também pode ser um princípio. Que ela pode servir de aprendizagem do mundo e do ser e revelar outros caminhos e outras verdades.
Por falar em Bem e Mal, acha que o escritor deve ter algum compromisso social, ou seja, um forte engajamento com as causas?
Tenho muitas reservas sobre a utilização do verbo dever na literatura: que a literatura deva ser isto, ou o escritor deva ser aquilo. Soa-me sempre a mordaça ou colete de forças. O/a escritor/a é livre de escrever o que lhe corre na cabeça e na alma, e creio, aliás, que só quando escreve de dentro para fora, com o que quer que seja que tem dentro, mas em total liberdade, atinge a escrever o seu melhor. O leitor pode é gostar mais ou menos do que ele ou ela sente, pensa, e tem a dizer, escolhendo então, em liberdade também, obras que lhe deem prazer ou inquietação, com as quais aprenda ou se sinta confrontado, se divirta ou se emocione, se delicie com a escrita ou vire a página em busca de uma revelação. Quem tem obrigações sociais é o cidadão (ou seja todos nós). O leitor que não se esquive delas, ou as verta apenas em cima de outros, porque os direitos e a liberdade de que goza, e que tanto custaram a ganhar, não se mantêm sem esses compromissos, erguidos ou derrubados por cada um de nós.
Dito isto, se me perguntar, como leitora, quais são as obras que me seduzem, então sim, porque sou cidadã comprometida e atenta, porque não entendo e me assusta o cidadão que o não é, as obras que mais me atraem acabam por ser aquelas que têm por detrás um/a escritor/a que tem uma forte costela social.
O que apareceu primeiro neste livro: a figura central, Alice, ou alguns contornos da história?
O livro começou com uma imagem. Não era necessariamente Alice, na personagem que ela vai ser no livro. Era apenas a de uma menina que, a fugir de um abuso, faz aquilo que muitas mulheres (e homens) fazem ao serem vítimas de abuso sexual: procura um refúgio dentro da mente, onde se possa distanciar do corpo. No caso desta menina, esta vontade enorme de fugir do corpo faz com que ele desapareça. O corpo torna-se invisível e ela não mais poderá ser vítima de outro abuso. Uma vitória sobre o corpo, sobre os agressores, uma súbita conquista de um poder enorme sobre ele. No livro, a história acaba por não ser exatamente assim, uma vez que não é no momento do abuso que Alice conquista esta capacidade, mas depois, quando teme que o momento se repita. O livro começou com esta imagem e com o desafio de construir uma história a partir deste momento: o que pode acontecer a uma pessoa que tenha a capacidade de ser invisível, como será a sua vida? E como será condicionada essa vitória sobre o corpo, essa imensa liberdade, se a ela juntarmos um trauma, uma pessoa que já era invisível sem o ser, e uma vivência anterior desprovida de sonhos e ambições?
Há uma dimensão fantástica ou fantasiosa no livro, relacionada com a capacidade de Alice se tornar oculta aos demais. Isto faz com que o livro possa ser inscrito no género da fantasia?
Caberá a quem cataloga as obras decidir onde o livro encaixa, e confesso a minha ignorância sobre os critérios que se utilizam para decidir o que é ou não fantasia, mas eu não o considero como tal. O "Mr Vertigo", do Paul Auster, é considerado fantasia? Não creio. Na minha opinião, a Invisibilidade de Alice, mais do que fantasia, é uma enorme metáfora que recai num mundo extremamente real.
A violência mais dolorosa ou traumática pode nem sempre ser a dor física?
Toda a dor está no cérebro. Fisiologicamente, é lá que ela é processada. Por isso, no meio de um campo de batalha, um soldado pode perder um braço sem sentir dor, porque a adrenalina fecha os campos de receção dos impulsos dolorosos. No entanto, a dor física é visível. Como digo no livro, são braços e pernas partidas, que toda a gente vê, que se tratam com gesso ou pensos, ou ligaduras ou cirurgias e, a maior parte das vezes, passa. É uma dor geralmente acompanhada, que não vive sozinha. A dor que apenas vive no cérebro é silenciosa, não se apresenta nos tecidos do corpo, é invisível e, por sê-lo não há mão sábia que conheça bem onde colocar o gesso, ou a ligadura. Falando de modo muito simplista e generalista (porque a dor é um fenómeno complexo) o progresso científico tornou a dor física menos violenta, mais tratável, ao passo que a dor psicológica, por ser invisível, continua a ser um mistério. Demasiadas vezes alastra no silêncio, muitas vezes na vergonha, e por isso lhe é permitido alastrar na mente como uma infeção no corpo antes da invenção da penicilina. E por isso, pode ser mais traumática e violenta.
Que leituras procurou fazer na investigação sobre o tema?
Houve vários temas abordados no livro que exigiram pesquisa, porque não consigo tornar a minha vida fácil quando escrevo... aproveito sempre para aprender e esgravatar a História. Para tocar o tema da dor que não é física, quis investigar o estado das artes relativamente à neurologia no final do séc. XIX, o que felizmente foi facilitado pela minha formação profissional enquanto fisioterapeuta especializada em neurologia. Para abordar a invisibilidade das mulheres, quis saber como era a vida delas, nas esferas privilegiadas da sociedade, mas acima de tudo nas mais pobres. Para fazer a história viver no contexto histórico que lhe dei, tive de rever e aprofundar a situação política e social do nosso país, e imaginar o que seria viver naquele fim de século em que foi ganhando adeptos a inconcebível ideia de que Portugal podia ser uma República.
O que a atrai, afinal, nos invisíveis da sociedade, seres que, embora nos rodeiem no quotidiano, muitas vezes nos esquecemos de ver?
Atrai-me, porque me repugna, a forma como conseguimos conviver tão bem com essa invisibilidade, e tudo o que isto revela sobre a nossa (des)humanidade.
Em que sentido a escrita representa para si uma forma de explorar os lugares mais inacessíveis da nossa mente?
Creio que uma das razões pelas quais me apaixonei pela escrita da ficção foi o convite a penetrar em cabeças humanas diferentes da minha e dissecá-las. A ficção é para mim, tanto enquanto escritora como leitora, um maravilhoso, inquietante, deslumbrante e importante exercício de empatia.
Quando se escreve um romance em torno de uma personagem como Alice, com que estado de espírito a autora chega ao fim do processo de escrita?
Exausta, tão vazia quanto plena, e num muito delicado estado de desequilíbrio.
Dos restantes personagens, destaca-se pela maldade pura a figura do Carniceiro. Até as figuras mais cruéis podem ser humanizadas?
Engraçado. Se me fosse pedido que apontasse uma personagem com maldade pura, eu diria outra, a quem não dei direito de voz própria, como dei ao Carniceiro. O Carniceiro é precisamente uma figura extremamente cruel que eu procurei humanizar. Dei-lhe voz, para que ele contasse toda a desumanidade do seu crescer. Acredito que somos a soma das experiências que tivemos, do amor que recebemos ou não, do sofrimento e dos abusos que nos foram impostos, e não nos pode surpreender a maldade de quem cresceu sem conhecer outra coisa, e que só com crueldade se fez respeitar. Por isso é tão perigoso este mundo, quando tantos seres humanos crescem na ignorância do que é a bondade, a paz, o amor. A maldade é um cancro que se espalha por gerações, uma herança envenenada que acaba por nos bater à porta a todos, mais ou menos diretamente.
A carga histórica deste romance também é importante. Por que razão faria mais sentido que a ação decorresse no período histórico entre o final do século XIX e início do século XX?
Na verdade, a história não tinha necessariamente de se passar neste período histórico. O que me atraiu, contudo, foram duas coisas. Por um lado, as semelhanças que percebi entre esse então e os dias de hoje. O final de uma Belle Époque e o caminhar cego para um abismo: as duas Guerras Mundiais e os extremismos de direita e de esquerda, com o seu Holocausto e os seus Gulags. Creio que caminhamos hoje também para um abismo: a catástrofe climática, a crescente alienação da sociedade, a falência gritante do capitalismo e o questionamento do que é afinal o progresso e onde ele nos levou. Mas caminhamos como se não quiséssemos saber. Um espírito magnificamente capturado no filme "Don"t Look Up".
Por outro lado, achei interessante ir a uma época onde as mulheres eram absolutamente invisíveis e recordar os absurdos que se diziam e escreviam sobre as suas parcas capacidades, vindos de ilustres personagens da nossa História e da nossa ciência. Porquê? Porque, afinal de contas, não estão assim tão longe e obviamente deixaram vestígios que ainda hoje se veem e se ouvem.
Depois de "No país do silêncio" optou por uma abordagem muito distinta, a começar até pela época histórica representada. Houve um esforço deliberado de não repetir fórmulas ou simplesmente a narrativa seguiu por essa via?
"A Menina Invisível" foi tudo menos um livro racionalizado e planeado. Mais que tudo, foi uma história que se impôs à minha vontade e não me largou até que lhe obedeci e me sentei a escrevê-la.
Do primeiro para o segundo livro o que mudou, no processo de escrita, na sua segurança?
Mudou a minha confiança no processo. Passei a encarar com mais tranquilidade os momentos em que a história se perde, os dias em que tudo o que se escreve é para apagar e esquecer, a dar menos importância aos momentos em que me sinto perdida na história e tenho a certeza de que nunca conseguirei juntar princípio e fim. Na pior das hipóteses, abandono a escrita durante alguns dias, até ela voltar a borbulhar em mim. Mas tenho agora uma confiança que não tinha, de que vai acabar por chegar a algum porto. De que posso levantar âncora e deixá-la fluir sem medo, porque o mais certo é ser ela a levar-me e acabar por me surpreender.
Em ambos os livros a violência é abordada, ainda que de modo diferente. É uma temática que, enquanto criadora, lhe interessa de modo particular?
Creio que a violência me interessa profundamente como pessoa e por isso transborda de mim quando escrevo - tal como as tais preocupações e compromissos sociais de que falámos atrás. Procuro entendê-la, virá-la do avesso, dissecá-la. A violência torna-nos frágeis quando achamos que somos o universo. Despeja-nos a arrogância, torna-nos mendigos, humilha-nos, faz-nos e desfaz-nos. Está infiltrada no quotidiano, nas esquinas da rua e da vida, no interior de conhecidos e desconhecidos, mas eu não a entendo, e isso perturba-me. Não a entendo, mas ela está em todo o lado, e é muito maior do que toda a nossa vontade, os nossos sonhos, os nossos planos.