Chega esta quinta-feira às salas o documentário de criação “Rua dos Anjos”, um testemunho cru sobre a realidade distinta de duas mulheres.
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Há um momento sublime, entre outros aliás, em “Rua dos Anjos”, o filme de Renata Ferraz e Maria Roxo que chega hoje às salas. Maria Roxo está a ser filmada a usar uma máquina fotográfica, mas a opção que lhe colocam à frente é a de múltiplos disparos. Maria Roxo não quer. Prefere “tirar” uma foto de cada vez, estudar o melhor enquadramento, a luz, a composição…
É este também o trabalho de realização de um filme e o conceito de “Rua dos Anjos” ganha aqui forma e justificação. Renata Ferraz é brasileira e participou como atriz no filme de José Barahona “Estive em Lisboa e Lembrei de Você”, interpretando uma profissional do sexo.
A experiência levou-a a convidar Maria Roxo, com trinta anos de droga e prostituição, para o que passou de um documentário sobre “uma mulher da vida” para uma experiência única de troca de profissões: Maria Roxo participaria na corealização do filme, enata Ferraz seria levada a tomar o corpo de uma profissional do sexo.
O resultado é um filme em aberto, com as marcas dos limites a que o seu próprio conceito obrigavam, mas que vale em grande parte pela imensa exposição a que se submetem estas duas mulheres, levando-nos para territórios íntimos a que poucas vezes, mesmo no documentário, temos acesso.
Maria Roxo, como nessa sequência com a câmara, mostra a sua sensibilidade para o ato de filmar ou fotografar o corpo, antevendo a alma, Renata Ferraz deixa-se leva pelas indicações da sua agora coautora, transformando-se num corpo “desejável”, à espera de clientes.
Curiosamente, o tabu ainda é uma realidade. Enquanto Maria Roxo se desvenda enquanto realizadora, completamente desinibida nesse papel, da Renata Ferraz enquanto mulher-corpo na página de internet que para esse efeito criou, nada vemos. E é evidente o seu maior desconforto, no “papel” que tenta representar.
Objeto único, no conceito, no dispositivo, na sua crueza que nunca perde a humanidade, “Rua dos Anjos” ganhou uma trágica dimensão quando Maria Roxo nos deixou, já durante o processo de montagem do filme. Vê-lo sabendo que já só é corpo fílmico é doloroso. Mas a sua disponibilidade e o arrojo de ambas vale a ida até esta rua…
"Rua dos Anjos"
Maria Roxo e Renata Ferraz