A celebrar 35 anos de carreira literária, escritor fala com o JN sobre o lugar, que não aceita, que o país lhe reservou. E releva em que momento decidiu dar o grito do Ipiranga.
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Aos 60 anos, 35 de carreira literária, Rui Zink é autor de leitura obrigatória nas escolas lá de fora, tem obra amplamente premiada lá fora, o seu visionário livro "A Instalação do Medo", agora reeditado, vai estar em cena lá fora, no mítico Festival d'Avignon, em França (dia 18 deste mês).
Lá fora, Rui Zink, dezenas de livros publicados - romance, ensaio, contos, banda desenhada - está longe de ser "um escritor de terceira classe". Em Portugal, o escritor e professor universitário é "um cidadão amaldiçoado" cuja obra não é suficientemente conhecida ou é treslida. "Queria ser empurrado para cima pelo meu país e demasiadas vezes fui empurrado para baixo", diz, em entrevista ao JN, desatando o nó na garganta.
"A instalação do medo" parece hoje menos ficção do que quando saiu, há quase dez anos. Em Portugal, vinga quem manda pela imposição do medo à maioria?
O medo é o melhor instrumento de trabalho para qualquer grupo que pretende exercer o poder. Não é o mais decente mas é o mais prático. E é tão fácil de usar que nem mesmo gente democrata, com a cabeça enxuta, consegue resistir à tentação. Ainda por cima, paira no ar um cheirinho a pós-democracia. Gente com medo faz menos ondas, chateia menos. E quem governa cai sempre no vício de se achar pai da nação a ter de aturar uma gentinha sem maneiras à mesa.
Esse medo confunde-se por vezes com estabilidade. Somos "o país dos brandos costumes", da "capacidade de sacrifício". Fomos capazes de uma revolução há 47 anos, mas não somos capazes de uma evolução, que passaria também, eventualmente, pela perda do "respeitinho"?
As mentalidades levam muito tempo a mudar. São como os traumas de infância, que nos acompanham vida fora. Portugal esteve séculos a fio vivendo com medo e com uma estranha culpabilização da vítima: "Alguma fizeste", "Pôs-se a jeito", "Se foi preso/despedido/violentado é porque alguma fez". O conformismo está-nos no ADN, por isso somos tão violentos nas redes sociais e na estrada: libertamos a fera açaimada.
Em Portugal, o movimento #metoo passou pelos pingos da chuva. Tão depressa parece ter-se quebrado o medo de falar, como mais depressa ainda parece ter ficado isolado quem deu a cara por um testemunho. No meio literário, criou-se até uma espécie de brigada de defesa de quem foi apontado. Acha estranho ser um meio que teoricamente contribui para o alargamento do pensamento e da liberdade a querer estreitá-lo?
Ah, esse é o drama moral (ou drama em gente, para citar Pessoa, que fica sempre bem) que nos ataca a todos. Em abstrato, todos somos muito justos, mas na prática até a rapaziada da cultura é mais tribal que uma claque de futebol. O erro para mim não é a solidariedade automática com os nossos amigos, é o pormos a mão no fogo por uma situação em que não fomos testemunhas oculares. Neste caso, acho as duas tribos primárias e bacocas: a dos intelectuais que, traindo o que professam, saltam logo a jurar "o meu filho nunca faria isso!"; mas também não prezo a gente que quer sangue e acha que agora é disparar primeiro, ver se é inocente depois. Eu sou do tempo em que a palavra do homem valia sempre mais, por isso aceito bem que (para compensar) tenhamos agora um PREC durante o qual a palavra da mulher derruba mundos. Mas, obviamente, nem todas as acusações são falsas, nem todas as juras de inocência são verdadeiras. Espero que, pouco a pouco, encontremos um equilíbrio: averiguar os factos do conflito entre indivíduos, não 'homem' ou 'mulher'. O #metoo foi e é importante? É. Mas tem um lado Revolução Francesa que faz perder a cabeça.
"O medo devolve-nos a infância do mundo", escreveu em "A instalação do medo". O livro foi publicado em 2012, numa altura em que estava cá com a troika (2011-2014). Por que razão governantes continuam a infantilizar-nos?
Os governantes continuam a infantilizar-nos porque são, eles próprios, fracos e infantis. É preciso muita fibra para não ficar petulante. Por exemplo, o fascínio pelo 'parque automóvel', pelas 'bombas da estrada'. Parecem miúdos. Sobretudo os que vão para Bruxelas, nunca mais têm cura. Por isso recusei ser eurodeputado das vezes que me assediaram para tal: o ar de Bruxelas queima o cérebro, e eu já o tenho bem amachucado, não posso arriscar.
E agora parece que "A instalação do medo" poderia ter saído hoje outra vez pela primeira vez. Agora, já não é a troika mas a pandemia. Escreveu: "O medo económico não será o mesmo que uma pandemia. Mas é mais eficaz. Não mata tanto, mas mói mais." Dadas as circunstâncias, reformularia a frase?
Não. Ela está bem como está. Farei outras, se o tempo mo pedir. Ou faça quem lê. Um livro é uma colaboração: eu fiz o passe, mas tem de ser o leitor a meter golo. Obviamente, vamos uma vez mais sair da pandemia bem amachucados. Todos um bocado mais encolhidos, mais lentos, mais timoratos. Em Portugal sobretudo, as pancadas são sempre sonsas, dadas aos bochechos. Por exemplo, há instituições que estão a aproveitar para "arrumar a casa". Correr com os indesejáveis, pressionar mais os assalariados. Perdão, colaboradores. Agora é tudo colaboradores.
Demasiadas vezes o país empurrou-me para baixo
Um ano antes da pandemia, publicou "Manual do bom fascista", em que também aborda o medo, a submissão, a crise financeira, a pandemia, a radicalização política. Escreveu: "O ponto de exclamação é uma arma do bom fascista (...) pontos de exclamação são o seu exército". É um caminho sem regresso, o do populismo?
A boa notícia é que não, não é um caminho sem regresso. Estas coisas são como o alfa pendular, ora inclinam para um lado, ora para o outro. A má é que vai durar mais uns anos e, se calhar, como no século passado, desaguar em algo feio. Depois de 1945, a jura foi que na Europa nunca mais haveria guerra, não foi? E mal a Alemanha se uniu, o que aconteceu? Guerra civil na ex-Jugoslávia, que fica na Europa, eu até fui lá de inter-rail, aos 18 anos. Agora, estamos num tempo em que o mundo está a fechar, mas um tempo virá em que o movimento será o contrário. A derrota de Trump foi uma péssima notícia para Bolsonaro e os seus congéneres mundo e Europa fora. Foi uma derrota importante numa altura em que pensavam que daqui para a frente era sempre a abrir. Não parou a dinâmica populista (muita atenção à França e à Itália, nos próximos anos), mas fê-los perceber que não são favas contadas.
Está na idade em que pode dizer tudo. Pelo menos, assumiu os 60 anos dessa forma. Na "Nota do Autor" da reedição de "A instalação do medo" rebela-se contra um certo status quo - aquele que configura na "Torre de mim", e diz sentir-se o burro do Shrek, o único gajo que se voluntaria "para pisar a mina" mas que não é bem o voluntário que as pessoas esperam ver chegar-se à frente. Parece um texto cheio de recados. Na verdade, o que é que tem atravessado na garganta?
Muita coisa. Eu queria ser empurrado para cima pelo meu país, é uma expectativa justa, e demasiadas vezes fui empurrado para baixo. O meu "sucesso lá fora" é importante, porque valida o que fazemos. "Ah, afinal não sou tão mau como dão a entender que sou". O meu lugar no espaço literário português está designado há muito: "escritor de 3ª classe, fila N, na coxia". Ora eu não o aceito. Quero ficar mais à frente, no centrão, onde se vê muito melhor o filme.
Qual a importância dos prémios?
Simples, legitimam e ajudam editores estrangeiros a prestarem atenção. Qual a importância da crítica no Jornal de Letras? Simples, é o jornal enviado para todos os lugares onde se interessam pelo português. Eu não escrevi só a Instalação do Medo, que não teve nem uma cartinha cá. Escrevi o "Anibaleitor", que na Roménia é dado nas escolas, como preciosa novela sobre o prazer da leitura. Cá? Perdeu-se. Escrevi o "Avô tem uma borracha na cabeça", cuja viagem já percebi que vai ser amolgada...
E dos festivais literários, que são cada vez mais mas com escolhas cada vez menos variadas?
Os festivais têm duas coisas: quando é amiguismo ou o oposto, solidariedade da parte do escritor. À Póvoa, vou porque insistem em manter o núcleo duro: e não pagam. Já quando é pago (e bem) o caso muda de figura. Há também o efeito preguiça. Há uns anos, morreu uma figura excêntrica da rua lisboeta, um louco manso, o Senhor do Adeus. Alguém no FB lembrou que era giro ir homenagear o homem no lugar onde acenava aos carros. Espontaneamente, apareceram umas 100 pessoas. Pois quem veio a malta da rádio entrevistar? Os "conhecidos", que era eu e o advogado Sá Fernandes. Entrevistar anónimos poderia dar mais sumo, mas os riscos eram maiores. Connosco já sabiam que não correria demasiado mal.
É frustrante continuarem cá a olhá-lo apenas como um autor sarcástico? A responsabilidade é de quem?
A responsabilidade é que, cá, lemos de ouvido. "Não li, mas ouvi dizer..." Este hábito português de folhear. E de copiar ideias também. Há vinte anos, publiquei com o Louro uma novela gráfica chamada "O Halo Casto". Foi um título que me deu um trabalhão a encontrar. Halo, como o dos anjos, casto de inocência. E, juntas, as duas palavras evocavam de forma lapidar um horror do século XX: Título adequado, porque entrelaçava quatro histórias de responsabilidade, culpa, e fuga com o rabo à seringa. O Louro fez uma grande capa, trazendo a guerra civil dos Balcãs para a Lisboa do elétrico 28. Ora, um recenseador foi tresler num dicionário que 'halo' era "a rosácea à volta do mamilo". E eis que numa série de curtas esta interpretação é papagueada sem pensarem. Nitidamente, fizeram-nas sem o livro à frente. Ou o cérebro.
"O avô tem uma borracha na cabeça", que já mencionou, saiu no ano passado quase ao mesmo tempo que o filme "The Father", ambos sobre a doença de Alzheimer. É um livro comovente, zero sarcástico. É considerado um livro para crianças?
O avô é um livro para todos os que o queiram ler. Mais do que haver "'livros para crianças', o que há é livros que não convém dar às crianças. Eu posso e devo ler as aventuras de João sem medo (do José Gomes Ferreira original), uma criança não deve ler as 50 sombras de Grey. Neste livro fiz o que faço sempre: disse o que tinha a dizer, em diálogo com a preciosa Paula Delecave. Já na nota de autor falo sobretudo (embora não só) para os crescidos. O Alzheimer (individual e coletivo), tal como o tribalismo, o populismo, o medo, é um tema fulcral do século XXI. E é bom que sejamos mais e mais a tratá-lo. Única regra: a fala vir de dentro, não de fora. Infelizmente, tal como com o #metoo, aos temas pertinentes não faltarão os oportunistas. Até já há quem, nunca tendo sequer visitado Auschwitz...
As pessoas sabem ler os seus livros?
Eu acho que é como um casamento duradouro: tem altos e baixos mas, com o tempo, aprendemos a apreciar o outro. Eu sou um corpo-voz, porque acho que é esse o meu dever enquanto cidadão português amaldiçoado com um talento imenso. E agora a pergunta: nesta última frase, eu estava a brincar ou a falar a sério? A ser irónico ou a ser megalómano? A resposta é: nim. É essa a beleza da mais difícil mas também mais prazenteira literatura: nunca sabemos ao certo. Ora cá está uma boa função da literatura: preparar-nos para lidar com um mundo incerto. Quem tinha hábitos de leitura, e gosto em ler 'textos-nim', lidou melhor com a pandemia. E tem menos medo quando sai à rua e leva em cima com os males do mundo.
Há quem o julgue visionário e quem apenas o veja como pessimista crónico. Leio-o e penso em Houellebecq, como ele sempre consegue escrever por antecipação, mesmo que para muitos não passe de um mal-amado, mesmo entre os pares. Faz sentido esta comparação?
É lisonjeira. Antes com ele que com um tomate.
Alguém escreveu que o caminho para a felicidade é mais curto para quem não se preocupa com o estado das coisas. Não é bem o seu caso, pois não? Ou são caminhos distintos?
Sou pessimista, mas acredito no poder mágico do otimismo. Herdei da minha mãe um estado de preocupação permanente. A razão: era ela criança, o pai dela foi preso pela Pide. Isso marcou-a para a vida. Já do meu pai herdei uma capacidade de me alegrar só de estar vivo. O meu pai tinha uma caixa de engraxar sapatos. Caso tudo falhasse, iríamos engraxar sapatos. Eu gosto dessa forma de estar na vida, mas sei que o lado da minha mãe é por vezes mais forte. A Instalação do Medo surgiu porque, se calhar, fui mais abaixo que muita gente com a porrada que a Troika nos deu. E foi crescendo dentro de mim uma fúria mansinha com as humilhações, com o modo soez como eu me encolhia, que depois dei o grito do Ipiranga. O que, no meu caso, é livro.