Peso pesado inesperado dos três dias do Alive, o efeverscente Sam Smith trouxe baladas, músicas disco e liberdade. No fim, houve um pedido de casamento, mas ele nem soube.
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Será injusta qualquer comparação entre concertos quando as naturezas de artistas e performances são tão diferentes umas das outras. Não fará sentido, por isso, contrapor a simplicidade (desta vez) eficaz de Arctic Monkeys e o carisma do seu vocalista com a antiguidade renovada de Red Hot Chili Peppers ou mesmo com a barulhenta e arrebatadora atuação de Girl in Red (delegada para um palco mais pequeno). Por isso é que dizer que Sam Smith deu o melhor concerto do Nos Alive inteiro é uma jogada ousada, mas há que assumir o risco. Contra todas as expectativas - até há pouco tempo, sábado era o único dia do festival que não estava esgotado -, o artista britânico, feito canivete suíço, pode muito bem ter sido o ponto mais alto dos três dias do Alive, que para o ano regressa entre os 11 e 13 de julho.
É que Sam Smith foi tudo do início ao fim e levou o público a todo o lado, numa espécie de visita de estudo aos sítios por onde andou, fora e dentro de si próprio. "Este espetáculo é sobre liberdade. Por favor, divirtam-se. Tirem as vossas camisolas e desfrutem", avisou e pediu o disruptivo artista, pouco depois do início do soberano concerto, o terceiro do britânico no Passeio Marítimo de Algés e bem diferente dos dois anteriores.
O espetáculo de Sam Smith arrancou com uma viagem às incontornáveis baladas do passado que o catapultaram para o trono da música pop mundial - como a "Stay With Me", a "I’m Not the Only One" e a "Like I Can" (do disco de estreia de 2014, “In the Lonely Hour”). E fê-lo com uma espécie de coro ghospel magnífico, agraciado pelas vigorosas vozes negras que acompanharam a estrela da companhia e ecoaram no céu azul escuro do recinto.
Progressivamente mais subversivo e rebelde à medida que a fita do tempo ia avançando, o cantor e compositor - que também cantou temas do novo álbum, "Glória", como "Gimme" e "Unholy" - foi acompanhado por um brilhante grupo de bailarinos, ora mais coordenados que marines em dia de desfile militar, ora harmoniosamente desalinhados, ora envolvidos num jogo de erotismo quase pornográfico e merecedor de bolinha vermelha no canto superior direito do palco.
Naquele senhor espetáculo, não houve nada que não fosse pensado ao pormenor. E, por isso, foi tão tecnicamente perfeito, embora também emocionalmente verdadeiro. Acima de tudo, ali interessou a verdade de ser-se quem se é - e nisso cabe tanta coisa, porque o ser humano é tanta coisa. Daí que talvez por isso Sam Smith tenha passado por vários momentos não só diferentes como contrastantes, na arrebatadora hora e meia de concerto que extasiou o público. Sam Smith foi clerical, foi excêntrico, foi obsceno, fez do palco salão, discoteca, igreja e cabaré, antes de acabar como um Satanás mestre em twerk num Inferno pintado a luz vermelha. E essa metamorfose refletiu-se, claro, no guarda-roupa usado pelo artista de 31 anos.
Vestiu pelo menos sete indumentárias diferentes (sem contar com a roupa com que veio ao mundo, que também exibiu despudoradamente): entrou em palco com um fato dourado cintilante que entretanto desmontou; depois trocou para um longo vestido roxo com cauda de diva e logo a seguir para outro vestido de tule rosa-choque ainda mais diva; o quarto visual foi um casaco bomber clarinho com uma t-shirt por dentro e umas calças com corações recortados no tecido; e o quinto um colete de cabedal preto com aplicações vermelhas e collants de rede. Pelo meio, ainda vestiu uma t-shirt da seleção portuguesa de futebol, que minutos depois tirou num striptease, e irrompeu da penumbra vestido de Nossa Senhora, ainda que não por muito tempo. Não demorou até que a túnica caísse e desvendasse a nudez de Smith, dançando e sentindo-se sem tabus, numa exaltação da sua sexualidade, do seu corpo e da sua identidade, enquanto o fenómeno de mimetismo da liberdade acontecia do lado de cá.
Embora tenha acabado o concerto com um tritão de diabo e uma espécie de coroa de cornos, o amor e a aceitação que transmitiu durante o concerto - contra a homofobia, a transfobia, a gordofobia, o racismo e basicamente tudo o que ameace o direito de ser-se em liberdade - são uma mensagem que não cabe no conceito de inferno. Entre o público, do lado esquerdo do palco, uma revelação: "Acabei de o pedir em casamento", partilhou Leonardo, que assistia ao espetáculo agarrado ao namorado.