O melhor concerto até meio do festival (será possível destronar Kevin Parker?) provocou uma enchente que acaba com o conforto no recinto e é preciso resolver isso.
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É melhor falarmos já disso porque vai ser essencial: nem toda a gente conseguiu ouvir o concerto (glorioso) dos Tame Impala em boas condições sonoras. Das 25 mil pessoas, todas as que estavam nas fatias da franja da encosta, nos caminhos laterais e para lá deles, de pé ou sentados no escuro debaixo das árvores e até atrás delas, e todos os do grande topo, estes devido ao duplo declive da plateia, sofreram com perdas de pujança de som, e queixaram-se de falta de definição de pistas em certas canções, e fundamentais, que chegavam lá acima imprecisas como água sem dinamismo nem limpidez.
É isto que significa o recinto estar a transbordar, há pessoas a ver o concerto para lá da quadra oficial do relvado e dos acessos, e por isso 3 a 5 mil pessoas não terão qualidade de som aceitável. O enchimento, como um enfarte, traz problemas de circulação que afetam o conforto e desregulam o habitat e a qualidade do resort natural do rock. E isso é um problema.
Resultado direto, à hora da debandada, depois dos 90 minutos dos Tame Impala, viu-se um fenómeno novo em Coura: o pó amarelo que só se levantava nos da frente e no mosh, estendeu-se a todo o recinto no fim e cobria-nos agora de poeira dourada quando subíamos para sair e víamos a terra revolta - com se a relva tivesse sido subitamente comida - pela massa de gente que se move lenta encosta acima a sair, enlevada no pó dourado, a pôr súbitos lenços de gang e de assalto.
Mas toda a parte sacrificial do rock, e mesmo o excesso, valem a pena se a entrega for para o que é bom e novo ou movedor de memória. No caso dos Tame Impala valeu pelos três: é a primeira nota artística cinco até meio do Vodafone Paredes de Coura 2015. Ou a segunda porque o sobressalto Pond foi uma festa psicadélica pegada a merecer pódio, ainda que no palco pequeno, mas também a desbordar, e os dinamarqueses Iceage não cumpriram ao vivo a expectativa do seu belo novo disco "Plowing into the field of love" e ficaram emocionalmente aquém numa versão expressionista dura e a preto e branco da sua sardónia punk, ainda que se mantenham no coração de todos os seus espectadores de ferro, porque também eles são flores com uma âncora, e havemos de querer continuar a ver Elias Bender Ronnenfelt voltar e a crescer, talvez numa pose menos decalcada de todo o esqueleto ameaçador de Nick Cave.
Os Tame Impala, que tocaram 12 canções, seis delas novas, e incluíram encore emocionado, e aparentemente imprevisto, deram o melhor concerto do festival até agora (esta sexta-feira há War On Drugs, Charles Bradley, Mark Lanegan e Allah-las, mais a Waxa e Merchandise) porque nos trouxeram o novo e a proximidade e para quem esteve dentro do concerto houve vários momentos definidores da memória do futuro.
O primeiro foi "Let it happen", a canção que é o "Let it be" de outra geração e que foi logo a segunda no alinhamento, aparecendo como um inesperado golo prematuro para festejar, e na versão disco maxi single, com aquele loop de meio segundo encravado a ecoar na felicidade de discoteca interminável daqueles oito minutos.
A imagem mais forte, do ponto de onde vi, a meio à direita na encosta, foi o vale de braços do público erguidos na luz branca a cantar, numa vénia vulnerável, o coro de "Why don"t they talk to me" a que ninguém consegue responder na solidão. Essa imagem supera mesmo a da límpida alegria de Parker quando se chegou à frente no fim e desceu ao fosso para abraçar o público ou depois quando agarrou naquele boneco de esponja azul que está sempre a bambolear extasiado entre o público da frente (e que a mim me parece ser sempre um dos soldados separatistas droides de Grievous no combate pela Federação das "Star Wars") e o virou a abanar para nós, como se fosse um miúdo (nasceu em 1986) de cabelo muito crescido ou como se nos tivesse agora ele a venerar.
"Eventually" e "Feels like we only go backwards", do novo "Currents" e do segundo disco "Lonerism"- o alinhamento alternou os álbuns, mas do primeiro só houve uma canção - mostraram que a viragem da banda é explícita, que não saiu do psicadelismo rock ampliado, como nos mostraram as imagens intermináveis do giroscópio de pictogramas no ecrã, mas que eventualmente o transformou para si para sempre ao acrescentar-lhe a morfologia móvel do género funk e disco digital, criando um novo revival que avança de 70 para 80 e aumenta de velocidade.
A primeira canção, em particular, é fulcral no novo rumo: porque também expõe a separação de Kevin de Melody (a francesa da Echo Chamber) quando o põe a cantar "porque eu sei que vou ser mais feliz, e que também tu, eventualmente" - como é "Cause i"m a man", onde ele confessa a sua misoginia e diz "eu sou um homem, mulher, nem sempre penso antes de fazer, nem sempre me orgulho daquilo que sei escolher".
Com o "Apocalipse dreams" a fechar o concerto antes do encore do quinteto num ambiente ameno de grande dream pop espacial, a melhor canção dos Tame Impala continuará a ser "Elephant", robusta criatura rock de 3" 31"", direta ao coração da mitologia, retro-futurista, feita com riffs de guitarra de um só nota, imensa e rompante. É também nesta canção, uma espécie de pico científico do concerto, que melhor se vê a voz fina de Kevin Parker, muito peculiar, que é como aquela que procura imitar a de tiple, de falsete como a de Lennon, uma voz que às vezes parece infantil.
Foi aqui que vimos o primeiro concerto da longa tournée em que os Tame Impala vão agora conquistar a Europa. Vale a pena dizer obrigado por isso.