Ator e encenador Henrique Feist olha para Ary dos Santos em "O sangue das palavras".
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Como seria Ary dos Santos, se hoje fosse vivo? O poeta de Abril, o lutador - a travar diálogos nas redes sociais? A resposta, para Henrique Feist, começa simples: "Uma festa". Mas também um exemplo de como o dom da palavra pode fazer a diferença, de como a cultura é identidade. "O sangue das palavras" é o espetáculo que mostra um Ary poeta, homem, solitário. Regressa hoje ao Auditório do Casino Estoril, com Henrique Feist, Valter Mira e Pedro Pernas. Vê-se de quinta a sábado às 21 horas, aos domingos às 17 horas. O JN falou com o autor e encenador Henrique Feist.
Como entrou Ary dos Santos na sua vida?
Ele entra na minha vida como na de todos: através do Carlos do Carmo, da Simone de Oliveira, da Amália. Gosto muito deles e há algo comum em tudo o que é Ary: os seus poemas e letras, que ficam. O poema da "Desfolhada" é um poema que marca, o poema da "Estrela da tarde". Como venho do teatro musical, quando encontro canções cuja grande essência está também na letra - porque é da tristeza e solidão de Ary que nasce o génio - para quem encena, isto é sumo.
Quem era, verdadeiramente, Ary?
Era uma pessoa triste, amargurada, e em termos teatrais isto é tanto. Porque, no fundo, o génio dele nasce de tudo por que ele passa, da solidão, de ter de estar sempre rodeado de amigos até às 6 da manhã, aquelas tertúlias com a Natália Correia, com a Amália - só que depois os amigos saem e ele continua sozinho. Foi isso tudo que me cativou e fez pensar que ele era muito mais do que um poeta de Abril.
Quem vamos conhecer neste espetáculo?
O Ary homem. Não o comunista, mas o homem. Também o poeta, porque está nele, mas é do homem que nasceu a obra. Antes de tudo isto ele era publicitário. "Sagres, a sede que se deseja", esse anúncio é dele. Este dom para as palavras está nele e o que ele acrescenta é a vida.
Como e quando surgiu a ideia do projeto?
Foi antes da pandemia, quando comecei a ver no Facebook e no Instagram muita raiva, muitos treinadores de bancada. Toda a gente percebia de política, depois toda a gente sabia de saúde, agora é a guerra, somos todos conselheiros. Começo a ver isto e a pensar no que nos tornámos, e deu-me para perguntar: o que faria Ary aqui?
E o que faria Ary aqui?
Provavelmente o que nós fazemos, mas com uma diferença: o dom da palavra. Não iria ser como tudo o que há hoje, gratuito. A peça explora um exercício, de percebermos que "todos somos Ary". Porque todos já gritamos contra a injustiça. E isto é ser Ary, porque ele também gritava contra as injustiças.
Era também um objetivo mostrá-lo às gerações mais novas?
Completamente. São vultos da cultura, e repara: não tens de saber um currículo, mas tens de saber que houve um Ary, uma Simone, porque a cultura é a coisa mais importante de um país. Ainda se canta Ary, até nos "Ídolos", em "The voice", pelo que continua atual. O que peço é que conheçam quem estão a cantar. Saibam que houve um poeta e um músico que trabalharam para vocês e tinham algo a dizer.