Autor de "Resistir é vencer", "Qual é a tua ó meu" e "S. João do Porto" morreu hoje aos 77 anos. O músico nascido no Porto passou a infância entre a Invicta e Leça.
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"Em miúdo, quando morava em Leça da Palmeira, na altura um bairro pobre de pescadores pobres, já fazia a avenida toda a salivar sempre que os meus pais me traziam à feira popular". José Mário Branco estava ainda agora aqui mesmo na mesma avenida, a Avenida das Tílias, nos jardins do Palácio de Cristal. Foi há um ano em setembro, e ele olha de pé para a sua infância, e a infância é o lugar da eternidade.
Continua aqui, José Mário Branco, onde nasceu, e cresce no jardim, é uma tília concreta da alameda, como Agustina, Mário Cláudio, Vasco Graça Moura, Eduardo Lourenço, Sophia, todos eles são árvores, permanecem, todos eles são poesia - e florescem. "É uma honra fazer parte desta avenida", disse ele de pé sobre si mesmo, "estão aqui vários membros do meu comité central clandestino, como a Sophia". Todos homenageados pela Feira do Livro do Porto.
Compor à noite, cantar de manhã
Filho das letras e de dois professores primários, José Mário Branco cresceu entre o Porto e Leça da Palmeira e ficou sempre marcado pela bruma de versos luzidos dessa vila piscatória que partilhou com o amigo da juventude João Loio, que morava ao lado em Matosinhos, e que reencontrou depois do exílio e da revolução.
Nos estudos, cursou primeiro História na Universidade de Coimbra, depois na Universidade do Porto, mas não terminou a licenciatura. A formatura da sua vida era outra e cimentou-se até 1960 na Escola de Música Parnaso, no Porto, na qual o histórico compositor de "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" (1971), de "Qual é a tua ó meu / S. João do Porto" (1982) e de, entre outros clássicos, "Resistir é vencer" (2004), estudou piano, flauta, percussão, composição, orquestração, análise musical e etnomusicologia.
O seu primeiro trabalho pago, revelou em entrevista ao JN, em agosto de 2018, foi aos "16 ou 17 anos". "Comecei a trabalhar na rádio muito novo. Era funcionário dos Emissores do Norte Reunidos.Foi o meu primeiro emprego remunerado."
Depois começaria a ser ativo na Igreja Católica, depois aderiria ao Partido Comunista Português e depois seria perseguido pelo longo braço escuro da PIDE até se exilar em França, em 1963, para depois voltar.
Só voltaria dez anos depois, em 1974, e quando voltou a Portugal fundou logo o Grupo de Ação Cultural - Vozes na Luta!, com o qual gravou o futuro em dois álbuns: "A cantiga é uma arma (1976) e "Pois canté!" (1977).
João Loio, o cantautor de "Máscara" (1982) e de "Canções de amor e guerra" (2002) recorda-se: "Eram outros tempos, muito diferentes, compúnhamos à noite uma música que depois na manhã do dia seguinte íamos cantar numa greve, numa fábrica ou numa festa e fizemos muitas canções assim", diz o compositor do Porto ao JN.
E Loio recanta agora esses versos, feitos para a grande festa de S. Pedro da Cova, " a música era dele, do Zé Mário, a letra era minha, e era assim que a cantávamos: "Era a mina, era a mina, mas agora é cá fora, de mineiro a morador, continua a nossa luta, por uma vida melhor"".
Mário Branco, Loio e Pina
Voltar ao Porto da infância é voltar ao lugar da imortalidade, concorda João Loio, "é voltar à perfeição, à lembrança, à inviolabilidade". Mas "a memória, como nos dizia o Pina, o Manuel António Pina de quem temos tantas saudades, a memória é ativa, é dinâmica, caminha connosco, cresce e reconstroi-se sentimentalmente, e é isso que agora recordo, o Zé Mário era o Bem, era a bondade, era-o verdadeiramente".
"Não recordo agora - continua João Loio - ainda não deu tempo, não recordo agora só a sua altíssima qualidade de compositor, recordo-o comigo não como artista mas como pessoa, como amigo, companheiro de viagem, de luta, o seu regozijo, o meu mestre".
E depois Loio conta divertido, quase estranhado, como os dois são fisionomicamente parecidos, ele e José Mário Branco, a cara branca e aluada, o bigode, os olhos aprofundados que viram tanto a espantar.
"Sim, éramos parecidos, isso sucedia. E também éramos parecidos com o Pina, também me confundiam com ele, andávamos muito juntos ali pelo Café Orfeuzinho, éramos todos daquele tempo diferente do de agora. E uma vez até aconteceu isto: fizeram um cartaz de um espetáculo meu e a foto do cartaz não era eu, era o Pina! Era uma foto muito bonita, até eu cheguei a achar que era eu, mas não era, era verdadeiramente o Pina, mas eu não importei. E ele também não".
Juntos, Loio e Manuel António Pina (jornalista do JN, cronista, Prémio Camões 2011, desaparecido em 2012 aos 69 anos) fizeram juntos "Basta imaginar" e Coisas que não há que há", com música do primeiro e letra do segundo, num livro-disco que Loio lançou em 2016 "já depois do Pina nos deixar".
Dissecar a vida e a verdade
Foram "longas as celebrações, as noites, os dias, os concertos em conjunto, as composições", e Loio estima muito na memória, "a memória que é um lugar ativo", os espetáculos que fizeram juntos anos depois, já homens maiores, "eu e a Regina de Castro, o Zé Mário e a Manuela de Freitas, a mulher dele, em que resgatávamos todos juntos canções e poesia e mais canções, tudo em parceria".
Tem uma cantiga favorita com Zé Mário, João Loio, "é a 'Cantiga do trabalho', salvo erro de 77, é do disco "Pois cante!", foi uma música que deu muito trabalho, que demorou muito, mas nem é uma cantiga de combate, é do dia-a-dia, essa é a luta, é o incitamento ao futuro e o futuro é a revolta, com ele tinha sempre que ser, a revolta vinha-lhe do interior, não era uma revolta de lapela, era a sua vida e a sua vida era muito a sério, ele dissecava a vida e dissecava a verdade".
Agora Loio cala-se, é ainda de manhã, a cidade acinzentou-se, choram os vidros para sempre, e o compositor está ainda no café do Porto onde recebeu a notícia que não queria ver: "Foi uma notícia muda, recebi-a na televisão, a televisão estava sem som, ainda pensei "é o Zé Mário, o que se passou?" e depois percebi logo". E depois diz de rajada: "Ainda estou estupefacto, não sei digerir isto, demoro a digerir, é uma chatice, nunca soube digerir, esta é uma notícia daquelas de demorar, eu vi-o há uns meses, ele estava bem, fiquei todo embutido, é assim que ainda aqui estou".