Baseado no romance homónimo de Jérôme Ferrari, “À Sua Imagem” passa-se na Córsega, num período de cerca de vinte anos, a partir da década de 1980.
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Relata a relação de uma jovem fotógrafa com um membro da FLNC, a Frente de Libertação Nacional da Córsega, ativa então na luta armada pela independência da ilha, que faz parte da França há mais de duzentos anos. O filme, que conjuga muito bem o relato humano com o pano de fundo histórico e político, é realizado por Thierry de Peretti, também ele natural da Córsega, a cujas questões tem dedicado a sua obra. O filme já está nos cinemas, recordando-se a conversa que mantivemos com o realizador.
Parece que o romance em que se baseia o filme foi escrito a pensar em si...
Somos os dois mais ou menos da mesma geração. O primeiro romance dele saiu quando eu fazia as minhas primeiras curtas-metragens. Conhecemo-nos há algum tempo, embora não possa dizer que somos amigos íntimos. Temos como projeto olhar para a Córsega como um lugar contemporâneo. Com temas políticos, como a luta armada.
Pensou logo em adaptá-lo, quando o leu pela primeira vez?
Tive a oportunidade de ler as provas antes da saída do livro e pensei que dialogava com o meu segundo filme, “Une Vie Violente”. Achei que seria divertido percorrer o mesmo caminho, mas através do filtro de um romance. Nunca tinha adaptado um romance, mas a matéria dos livros do Ferrari é muito forte, é uma literatura muito afirmativa, o estilo é muito assumido. Comecei no teatro, a trabalhar sobre os grandes textos, seria entusiasmante trabalhar sobre um romance, sem precisar de me ocupar da estrutura.
O que achou que seria necessário fazer para não repetir o filme que tinha feito antes, para fazer dois filmes diferentes sobre o mesmo tema?
Não coloquei muito essa questão. Há motivos que são comuns, mas é sobretudo a personagem principal que é muito diferente. Aqui é uma jovem fotógrafa com uma vontade de emancipação, talvez mais forte que a personagem masculina de “Une Vie Violente”, que tinha uma vontade de reconciliação. Podiam ser irmãos. Se pudesse, continuava a fazer o mesmo filme. Tenho a impressão que muitos realizadores têm a mesma vontade.
Já tinha uma cumplicidade na escrita de guiões com a Jeanne Aptekman.
É o segundo filme que escrevemos juntos, mas o primeiro que se passa na Córsega. Com a Jeanne não partimos de uma base imutável. O que é forte com ela é que o projeto muda durante a escrita. No fim, não é de todo o mesmo que era no início. Renova-se. Divertimo-nos imenso. Tratando-se de uma adaptação, não discutimos de início até que ponto vamos trair, onde é que vamos fazer igual. Gostamos muito de procurar em conjunto.
Os acontecimentos passam-se quando era criança. Tem memórias desse período?
Não faço filmes diretamente autobiográficos, mas gosto da ideia que o sejam, um pouco disfarçados. Há acontecimentos muito pessoais no filme, gente muito próxima de mim que entra no filme. Fazer um filme na Córsega é como responder a uma falta. Gostava de ver filmes contemporâneos da época que vivi lá na minha infância. Que contassem essas histórias. O período de que “Une Vie Violente” e “A Son Image” falam já passou. Gostava de fazer um filme na Córsega sobre os dias de hoje.
Como é que se passou a rodagem, ao nível de autorizações, contacto com as pessoas?
Eu nasci na Córsega. Somos só 350 mil. É uma família disfarçada de nação. Tudo se passou de uma forma muito simples. As pessoas têm vontade que contem as suas histórias, que filmemos.
O desejo de independência, que atingiu essa forma armada e violenta que vemos no filme, existe ainda hoje?
Na altura em que o filme se passa, o nacionalismo, como força política, que explodiu em várias correntes, em vários partidos, representava nas urnas, nas eleições, territoriais e municipais, menos de 10%. Em termos de contestação era muito forte, porque se estava sempre a ouvir falar disso, com trezentos atentados por ano, mas nas urnas era muito pequena. Hoje em dia, a situação é inversa.
O que se passou então, desde o período em que a história do seu filme termina?
A FNLC depôs as armas em 2014, como a ETA ou o IRA, mas ainda existem partidos nacionalistas e autonomistas, com projetos políticos diferentes. Os autonomistas, que advogam uma certa forma de estar com o governo central francês, estão no poder desde 2015. Já foram plebiscitados nas urnas três vezes e ganham em todos os municípios importantes na Córsega.
E o que advogam os nacionalistas?
O projeto políticos dos nacionalistas, é de uma autonomia de pleno direito. Querem que sejam os corsos a fazer frente, por exemplo, a um turismo massificado, como sei que existe agora em Portugal. E pedem a libertação dos presos políticos, que o estado francês ainda não resolveu democraticamente.
Há presos políticos na Córsega?
É essa a grande questão. Para o estado francês não são presos políticos, são presos de delito comum. Mas têm um tratamento que normalmente é reservado aos presos políticos. Tudo se cristalizou em 2022 com o assassinato na prisão de Yvan Colonna, que estava na prisão desde o ano 2000, pela morte do prefeito da Córsega do Sul. Disse-se que tinha sido um crime de delito comum e não um ato político, mas ao mesmo tempo não foi tratado como um preso de delito comum. Há nesta situação uma grande ambiguidade.
Ao fazer filmes sobre este tema, tem uma posição tomada?
Eu sou pela democracia. E pelo direito dos povos a autodeterminar-se. Será que os corsos são um povo? A questão é essa. Para a França, não há um povo corso. O que é uma aberração. Há um povo corso. Há uma cultura, uma língua, uma história. Que está colada à história francesa há mais de 200 anos, o que não é muito. Pode negar-se, mas é um facto histórico. Vemo-lo todos os dias. Vemo-lo geograficamente. A Córsega não é a França.
Teve algum empenho nestes movimentos corsos?
Na época do filme, não era de todo nacionalista, era mesmo completamente contra. Na adolescência, não era nada como os jovens do filme. Hoje, quando se vive na Córsega, a presença francesa parece completamente incongruente. Todos os anos há cinco mil franceses reformados que se instalam na Córsega porque o tempo é bom, o que cria uma violência. Há problemas sérios na Córsega, políticos, sociais, criminais. Mas há problemas que não conseguimos resolver sozinhos, isso é evidente.
A França tem vários departamentos, em lugares muito distintos do mundo. Não há uma espécie de colonialismo escondido?
Claramente. A mesma coisa com a Córsega. O colonialismo está também na representação. É por isso que faço filmes. Já alguém disse que os filmes libertam a cabeça. Eu espero que o cinema liberte o imaginário. O meu projeto é fazer cinema. E fazer cinema contemporâneo. Criar imagens que misturem coisas que são nossas, da nossa história, mas também de outros lugares
Alguns desses departamentos situam-se a vários milhares de quilómetros de distância de França.
Ainda há uma dependência muito forte. Na Córsega é a mesma coisa. Há uma dependência muito forte dos serviços do estado e dos fundos. Mas é verdade que parece de loucos. A Reunião, a Nova Caledónia, são problemas políticos que não estão resolvidos. A violência regressa a uma qualquer altura. Há presos políticos, é preciso chamar as coisas pelo que são.