Marco da Silva Ferreira estreia-se hoje, no Porto, com nova coreografia antes de partir para Lisboa a 28 e 29. Segue-se uma digressão europeia.
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Como uma tempestade de grau quatro, Marco da Silva Ferreira irrompeu como coreógrafo para o público português e internacional com "Hu(r)mano", em 2013, depois de ter ganho um formato televisivo e ter passado por vários coletivos como intérprete. Hoje, passados quase dez anos desde esse primeiro embate, estreia "Carcaça", no Teatro Rivoli, no Porto.
Nesta década "mudou a escala, não da criação em cena, mas a escala da estrutura, o olhar e os colaboradores", conta o coreógrafo ao JN. "Houve um crescimento e uma maturação, uma ampliação do grupo de pessoas com quem trabalho, e dos coprodutores. Dez anos de pesquisa permitem aprofundar ideias e procurar relações entre elas", diz.
"Carcaça" nasceu de "um certo incómodo, no pensar como se forma um código cultural identitário que se quer com inclusão e aproximação, mas que, com o tempo, se torna de exclusão - e de definição de quem se inclui e quem se exclui. Há uma tentativa de conservação do passado muito forte, com pouca margem para o futuro", constata.
Para transmitir este incómodo em cena, teve de encontrar um elenco, escolhido parte por convite, parte por audição, "a quem interessam as mesmas questões do que a mim, um elenco de danças de rua, de comunidade, muito diverso. Não são na sua maioria bailarinos de escola, mas conseguem ter uma perspetiva da dança mais social. Com muitos olhares, discursos complementares e não "flat" sobre cultura".
A dança que oferece Marco da Silva Ferreira engloba "um olhar sobre clubbing, dança contemporânea com espaços de dança do passado, herdadas, e códigos simbólicos. É a descoberta de uma identidade coletiva. Tem de existir um olhar disponível a cada nova geração. Esta tentativa de cristalizar uma identidade não nos permite aceitar a transformação", conta.
O pensamento sobre o espaço e o tempo que habitamos, a reboque da "globalização que vivemos nos últimos anos e os contrapontos", fê-lo questionar a sua "identidade como português e como europeu".
Uma polarização de dois extremos que se encontram em crescimento: "Se por um lado há um atravessamento das fronteiras, que não é real, há movimentos que não querem atravessar essas fronteiras, códigos nacionalistas e cânones do passado externos. É necessário provocar um encontro e um olhar mais líquido sobre novas possibilidades, uma espécie de futuro".
Nos últimos anos, Marco da Silva Ferreira tem trabalhado como artista associado de várias instituições culturais europeias, como o Teatro Municipal do Porto ou o Centre Chorégraphique National de Caen, em França. Mas não considera que esses processos possam ser considerados uma prisão. "Como artista associado sempre tive diálogos muito saudáveis e benéficos. Permitiram-me trabalho consistente, contínuo, planificar a minha vida, de forma bianual". Mas, adverte: "Creio que é necessário ter algum cuidado com o ritmo de apresentação para que não seja automático".
Esse ritmo fez com que há apenas um mês tenha estado no Porto, com uma coreografia para a sul-africana Via Khatlehong, mas pensa que as contaminações sejam apenas no desenho, não de léxico coreográfico.
Uma peça coral que se dança da cintura para baixo
Para "Carcaça" Marco da Silva Ferreira traz uma peça coral, com dez intérpretes - ele próprio é um deles - e dois músicos. Apesar do trabalho coletivo, há uma preservação da identidade mesmo quando trabalham em uníssono, a maestria da eucinética. Numa miscigenação de códigos folclóricos, com trabalho de pés muito concreto, obedecendo aos padrões rítmicos do baterista João Pais Filipe, a velha máxima parece imperar: dança-se da cintura para baixo e assina-se da cintura para cima. A roda onde canta a "Muiñeira para a filla da bruxa" é saudosamente evocativa dos trabalhos de Mauro Bigonzetti.