Celebrou-se o ano passado o centenário de Goliarda Sapienza, escritora italiana falecida em 1996, sem nunca ter visto a publicação integral da que é considerada a sua grande obra-prima e uma das obras maiores da literatura transalpina do século XX, o monumental “A Arte de Alegria”.
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Para se conhecer o seu percurso e o porquê do seu livro ter sido sistematicamente considerado “impublicável”, nada melhor do que assistir ao que é agora um dos melhores momentos da competição pela Palma de Ouro de 2005 do Festival de Cannes, “Fuori”, de Mario Martone.
O realizador napolitano, que conhecemos de filmes estreados em Portugal como “O Rei do Riso” e “Nostalgia”, escreveu o guião com a sua esposa e habitual colaboradora, Ippolita di Majo, e contou sobretudo com uma espantosa Valeria Golino para dar corpo e espírito, em doses iguais, a uma mulher oriunda de uma família libertária e que sempre defendeu essa mesma liberdade e independência.
O filme evolui sobretudo em torno do tempo passado na prisão por Sapienza, e a relação que manteve depois com um pequeno núcleo de mulheres que conheceu atrás das grades, sobretudo a sensível, perturbada e toxicodependente Roberta, criada no ecrã pela grande descoberta que é Matilda De Angelis. Será muito estranho se “Fuori” ficar fora do palmarés do festival.
O mesmo não se poderá dizer de “Eagles of the Republic”, de Tarik Saleh, de quem também vimos o filme anterior. Mas, ao contrário de “A Conspiração do Cairo”, o novo filme do realizador de origem egípcia, mas nascido na Suécia, onde vive e trabalha, não dá nunca o salto do que é uma realização convencional, quase ao nível de um mediano telefilme, ao contar a história fictícia de um ator, a maior estrela do cinema egípcio, que se vê obrigado a fazer um filme sob a supervisão de um consultor do presidente. Um golpe de estado iminente vai ainda complicar a vida ao herói.
Jafar Panahi, grande realizador iraniano que soma já vários problemas com as autoridades do seu país, também não convenceu com “Um simples acidente”. Aqui, um pequeno acidente de automóvel de uma família cuja mulher espera um novo bebé, dá origem a uma cadeia de acontecimentos, por vezes brutais, que dão um ar do clima que se vive hoje naquele país do Médio Oriente. Mas a narrativa dispersa não cria grande empatia com o lado de cá do ecrã.
Entretanto, os irmãos palestinianos Arab e Tarzan Nasser voltaram a trabalhar com a produtora portuguesa Ukbar Filmes, com quem já tinham feito “Gaza, Meu Amor”. Agora, “Onde Upon a Time in Gaza” é um piscar de olho a Sergio Leone e Quentin Tarantino, colocando a trama no território palestiniano em 2007, quando uma equipa prepara o que seria o primeiro filme de ação rodado em Gaza.
Obviamente, o filme fala muito do presente, começando com a voz off do novo presidente norte-americano e a sua declaração completamente desajustada da realidade de querer transformar Gaza numa nova Riviera. Os irmãos Nasser colocaram esta “pérola” à última hora, e bem, num filme guerreiro, divertido e irreverente, muito à imagem dos seus autores, que se juntam assim a Elia Suleiman, pegando-lhe até no testemunho, como a voz atual do cinema palestiniano.