O Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP) prosseguiu este domingo com dois espetáculos, um de rua e outro de sala, onde a morte é o tema central, mas abordada com estéticas muito distintas. Até dia 16 há ainda vários espetáculos para ver.
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A chuva pairava como uma ameaça sobre o Jardim da Cordoaria, no Porto, mas não foi impeditiva para que mais de uma centena de pessoas se sentasse, este domingo, nuns banquinhos de praia, criando uma simbiose com os velhinhos de Juan Muñoz ("13 a rir uns dos outros", conjunto escultórico de 13 figuras humanas que povoam aquele jardim), para ver os encantos do Teatro Dom Roberto. Igor Gandra, diretor do FIMP, já tinha feito o aviso "Ricardo Ávila é um dos melhores roberteiros portugueses".
As primeiras filas estavam repletas de crianças que liam o programa e comiam bolachas, enquanto os pais teimavam em vestir-lhes as parkas, é a função dos pais antecipar os males - os atmosféricos e os outros.
Ricardo Ávila explica aos presentes: "Sou da Ilha Terceira e vim aqui mostrar-vos uma tradição com mais de 300 anos, que sobreviveu de artistas à moeda, nas praias e nas praças". Logo num castelhano, bem alto, se ouve de uma lateral: "Ah!, é uma tradição portuguesa, vamos ver".
Numa música, muito ritmada Ávila dá o mote para o "Barbeiro Diabólico". "Venha a morte que é de todos a mais forte, ninguém escapa a essa sorte". Os espanhóis dançam, as crianças gingam, e os adultos portugueses insistem em manter a compostura. Entrando na sua caixa mágica, saem do topo o Barbeiro e Dom Roberto - e, afinal, o Mal está onde menos se espera. Dom Roberto usurpando a identidade do Barbeiro ao som de "Highway to hell", dos AC/DC, apropria-se da barbearia, dá-lhe um novo letreiro e a devida sinalização com a espiral azul e vermelha.
Entre várias pauladas e paneladas, despacha tudo e todos, até os imortais: o Polícia, o Diabo, até a própria Morte. As crianças presentes dividem-se em fações: "Atira-o para o caixão", grita um empolgado. Outro, mais nervoso, assegura aos pais: "Isto não é normal, aquele senhor já matou duas pessoas". Toda a gente ri à gargalhada, a comicidade dos Robertos reside nessa simplicidade: dois bonecos com voz de hélio, a darem pauladas. Duas senhoras francesas estão surpreendidas, comentam entre dentes: "Que interessante a ideia que aqui têm da polícia".
No fim, Roberto apesar de ser um malvado, casa com Roberta, que era o seu propósito inicial. Uma das crianças insiste: "Atira-a para o caixão". Mas Roberto quer apenas levá-la para casa para, evidentemente, serem felizes para sempre.
Um jogo de símbolos
"Farto de tudo, a morte é o bom caminho, mas, morto deixo o meu amor sozinho". O soneto de William Shakespeare entregue à entrada do espetáculo "Corpus", de Xavier Bobés, no Teatro Campo Alegre, dava o mote.
O público sentado em volta de um círculo de madeira, como uma base para o "Homem Vitruviano" de Leonardo da Vinci, aguarda, iluminado por uma aura de luz. Frances Bartlett, pródiga violoncelista toca na penumbra, numa espécie de chamada para o divino. Xavier Bobés vai retirando do alçapão, que parece um alçapão mágico, peças anatómicas de gesso e vai construindo figuras. As suas pausas e a sua elegância gestual deixam espaço para que cada um construa os seus sentidos.
Dos alçapões retira mãos que pedem auxílio, como se as salvasse ou lhes desse uma espécie de redenção. Uma mão levanta o dedo acusatório a Deus, e duas mãos de criança levantadas pedem colo. Bobés consegue alterar-lhes os sentidos, as mãos de criança podem apenas estar alçadas para trepar a uma árvore; o dedo acusatório ganha outro sentido se lhes pousarmos um pássaro.
A voz angelical de Bartlett confere uma atmosfera espetral, interrompida por uma cabeça repleta de dinheiro que se parte quando cai vertiginosa no chão. Tudo passa, mas a vida vence sempre. Continuará a haver dentes de leão soprados pelo ar, árvores e pássaros que repovoam tudo, mesmo quando já não estivermos aqui.