Eram 2.48 horas desta sexta-feira quando soou o último acorde de Cult no primeiro dia do festival EDP Vilar de Mouros. Em hora e meia de concerto arrebatador, Ian Astbury sentiu-se como nunca em Portugal. Estava em casa no Alto Minho, e isso foi mágico. Manic Street Preachers também ficam na história.
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Se o cartaz de Vilar de Mouros é feito de momentos e estórias de outra época, eis uma bem atual, a da consagração de Cult em Portugal. Eles já passaram por festivais nacionais grandes como Paredes de Coura ou Alive, mas nunca foi como ontem. E não foi o repertório que mudou, foi o local. Aquele é o público deles. Se dúvidas houvesse, o "frontman" Ian Astbury dissipou-as antes de "Sweet Soul Sister": "Este é, definitivamente, o festival mais cool de Portugal".
O alinhamento foi marcado pela celebração dos 30 anos do belíssimo "Sonic Temple", o disco que trouxe ao Mundo grande parte dos êxitos da banda de Yorkshire, Inglaterra. Das onze que integram o álbum, os The Cult deixaram oito em Vilar de Mouros, mas a coisa até começou morna. Nas filas de trás, o início mais calmo do alinhamento não deixava fugir do pensamento a possibilidade de termos ali mais um momento de melancolia, mas à frente do quarteto estavam milhares de aficionados, e esses não iam arredar pé até consumirem uma boa dose de rock dos anos 80.
O momento de viragem foi "Fire Woman". Até aí, o espetáculo já tinha passado por problemas de som, no início com "Sun King". Também por lá andou "Soul Asylum", grave e bela, que regressa aos alinhamentos nesta digressão depois de só ter sido tocada em 1989. "Vocês parecem interessados", constata Ian, antes de uma "Fire Woman"que deixa todos loucos ao primeiro acorde. Começava aí a festa, a comunhão de um público que pagou, esperou e degustou.
Que não fiquem dúvidas que o concerto de Cult, ontem, foi para aficionados. A circunstância é que juntou lá muitos, e isso fez daquele um dos momentos que ficam para a história dos 54 anos do festival minhoto. Depois de duas passagens pelo álbum "Love", com "Rain" e a obrigatória "She Sells Sanctuary", Ian Astbury já tinha o público ganho. Ou melhor, Vilar de Mouros já tinha os Cult ganhos, pois os elogios do vocalista a Portugal pareciam não cessar.
"Amo o vosso país, é lindo, parece um lugar secreto a pedir para ser explorado. Agora vamos todos para casa da Madonna fazer uma festa porque vocês não querem dormir", atirou, já depois das 2.30 horas, para gáudio da turba festivaleira. "Quem sabe, se calhar até vimos morar para aqui", completou, antes de terminar o espetáculo com a clássica "Love Removal Machine", do álbum elétrico, de 1987. Escusado será dizer que às 2.48 horas Vilar de Mouros batia palmas como se não houvesse amanhã.
Manic Street Preachers: um gentleman também sua
É ingrato, contudo, atribuir os louros da noite toda a Cult. É que Manic Street Preachers foram claramente mais "gentlemans" e nem por isso suaram menos de Cult. Os galeses liderados pelo senhor James Dean Bradfield deixaram a pele no Alto Minho. Veja-se pelo início, quando ainda estavam frescas as primeiras cervejas e a banda entra com o êxito "Motorclycle Emptiness". Todos dançam, os telemóveis levantam, a multidão percebe que aquele concerto pode marcar a noite, mas James expressa apenas um sorriso quase inexpressivo enquanto continua a rasgar aquela "Motorcycle Emptiness" delirante do álbum de ouro "Generation Terrorists", aquele com que a banda se estreou, em 1992.
A mensagem política esteve lá e tocava os mais insensíveis. O tema "If you tolerate this, your children will be next" basta ser lido pelo título para despertar o sentimento ativista que existia dentro de cada alma daquela multidão humana. Despediram-se do público com essa, enquanto a projeção do espetáculo avisava os mais incautos para contrariar o discurso dos corruptos. Antes do fim, houve tempo para "Sweet Child O'Mine", dos Guns N" Roses, que se tornou, obviamente, mais um dos grandes momentos festivos da história da noite.
Os decibéis foram o remédio de Therapy?
Ainda na senda da mensagem política, falemos de decibéis. Os Irlandeses Therapy? fecharam a noite no palco secundário com cânticos anti-Trump, anti-Boris Johnson e muita distorção de volume elevado.
O concerto andou sempre na fronteira entre o punk rock de temas como "Nowhere" ou "Screamager" e o metal alternativo exemplificado com "Teethgrinder". Chegamos ao fim sem perceber de qual é que o público gostou mais, mas foi boa a simbiose entre a plateia e raiva de Therapy?, com momentos em que as filas da frente saltaram com pujança, e outros em que todos cantaram "Potato Junkie" ou "Diane", cover de Hüsker Dü.
Na bagagem, os Therapy? levavam a Vilar de Mouros uns incríveis 15 álbuns lançados em 30 anos de carreira. Terminaram com "Success? Success is Survival", do último de originais, o "Cleave", que saiu no ano passado.
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Anna Calvi pôs a velha guarda a ferver
O rock abrasivo da londrina Anna Calvi parecia destoado de um cartaz cujos nomes fortes, do dia de ontem, eram Manic Street Preachers e The Cult. Contudo, esta guerreira de voz infindável e guitarra rebelde mostrou que um bom concerto não se mede pelo volume dos decibéis nem pela quantidade de décadas de carreira.
O concerto que começou terno com "Hunter", música do álbum homónimo de 2018, rapidamente se transformou numa das mais pujantes atuações de Vilar de Mouros. Ainda que sejam excessivas as comparações, ela tem muito de Patti Smith, talvez menos de PJ Harvey, e não disfarça a influência sombria que o lendário Nick Cave teve no seu crescimento musical.
Anna Calvi destacou-se não só pela qualidade da atuação altamente profissional, mas também porque rompeu com o que tinha sido o tédio de Wedding Present. A fórmula veloz deste indie rock não convence facilmente quando o público é pouco e os aficionados não chegam sequer à segunda fila. Safou-se um David Gedge esforçado e puxar pelo público, quase sempre sem grande sucesso. Antes, o palco MEO abriu com Tape Junk, o projeto do português João Correia que foi um concerto curto demais para apreciar com exatidão, ainda que se tenha de referir o esforço e a distorção ocasionalmente satisfatória