Como tudo começou e os picos de 93 até agora. Começa, esta quarta-feira, a maratona de 38 bandas, dura quatro dias. LCD Soundsystem é o grupo "mais caro de sempre do festival" de Paredes de Coura.
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Diz a lenda que os LCD Soundsystem, superestrelas de punk-dance de NY, são agora tão caros que sugaram metade de todo o orçamento de Coura 2016. João Carvalho, o popular diretor do festival, que arranca milhares de "likes" no Facebook mesmo quando só publica fotos de vacas a pastar no mais famoso prado do Alto Minho (com a legenda: "relva biológica em tratamento para vocês"), ri-se mas confirma: "Há uma parte de verdade nessa lenda... LCD é a banda que todos os festivais do mundo querem este ano ter e, sim, é a nossa contratação mais cara em 24 anos. Mais: este é o Coura mais caro de sempre em cachês e produção, mais 15% que o do ano passado - o recinto cresceu para mais 3 mil pessoas [a lotação é de 25 mil/dia], triplicamos chuveiros e wc, agora há até secadores para as meninas", aponta João Carvalho, que aprecia especialmente a locução de que Coura é "o melhor resort de rock do país".
Sempre a crescer, um só ano horribilis
É uma verdade que terá começado na parte final de 90, ainda no patrocínio das cervejeiras, que se alastrou em 2004, quando a Optimus entrou, e que se ergue agora ali como a verdade num néon, quando a Vodafone chegou em 2013 e se aplicou a embelezar o habitat natural.
Desde os 1500 espectadores de 1993 e dos cartazes esverdeados que o festival não pára de crescer - excepto na escuríssima edição de 2010, despatrocinada, com o cartaz distorcido por Cult, Klaxons e Prodigy (e ainda assim com Tallest Man on Earth e Caribou na tenda pequena a conservar corações), no único ano realmente horribilis da história do festival. A melhor afluência de sempre foi no ano passado, esgotou uma única vez, transbordou, e foi por causa de Tame Impala (e do tufão neo-psicadélico Pond que varreu inesperadamente a nervosa multidão ao fim da tarde, despenteando-a toda), o maior concerto de sempre de Coura cristalizado nos oito minutos da explosão "danceball" "Let it happen".
Hoje o diretor assegura: "O sucesso [de bilheteira] deste ano já está garantido há um mês, vamos ter a casa cheia", os últimos 3 mil passes gerais foram postos à venda no início da semana.
Coura é...
Já mais pequeno do que o Primavera Sound, o seu primo "hippie-chic" de cinco anos do Porto, com menos de metade do público do Alive (a propósito: por que é que o maior festival do país, que vive apertado como as camisas dos loucos no Passeio Marítimo de Algés, não se muda para o vazio grandioso do parque municipal da Bela Vista de Lisboa?), o que faz de Coura um festival especial, há anos no pódio das olimpíadas do rock?
O contexto puro em que ocorre (um vilarejo castiço e barato, anfiteatro e relva natural, praia fluvial, um rio de cristais frios), e o modo como ocorre, que nos prolonga quatro dias dentro daquela redoma emocional. Coura não é como os outros; nos outros entramos e saímos e ao fim de cada dia reentramos na rotina existencial; em Coura, onde a maioria do público acampa, permanecemos sempre dentro do cerco afetivo do festival.
Talvez isso, a maior exposição, a disponibilidade emocional, o rubor da memória, explique o encantamento: o que é Coura, João Carvalho, senão um ataque ao lobo límbico ou um feitiço neuronal? "Coura é... amor. É uma frase batida, eu sei, mas é verdade, sabemos todos. Há aqui um espírito de liberdade e gratidão que, ainda hoje, me parece sempre invulgar. É uma coisa que se vê na rua, que está na cara das pessoas", como uma coisa que é, que basta ser, como o poder de uma marca global.
Os verdes anos
Todos, mesmo os que não têm o superpoder de Funes, o Imemorial (Funes é uma criação de Borges: um homem com uma memória tão colossal que recorda todos os segundos exatos da vida desde que nasce até que morre com o crânio esmagado pelo peso da memória), todos temos um momento definidor em que nos apaixonamos por Coura.
Para os de 1993, o ano da edição de "In utero" dos Nirvana, para esses que desceram pela primeira vez a encosta ervada e nua para ver Ecos da Cave, será esse, essa memória é uma medalha, o palco em baixo, posto de lado, à esquerda, e não ao fundo como agora é, naturalmente virado para o anfiteatro. Ou nos dois anos seguintes, ainda gratuito, já romântico, música moderna portuguesa e antecâmaras indie, Cosmic City Blues, Mão Morta, Tédio Boys, Pop Dell Arte, Blind Zero, todos postos no cartaz glauco em cima do vulto elétrico de Kurt Cobain (os Nirvana nunca tocariam em Coura, só os Foo Fighters 10 anos depois; o cartaz de 95 ainda espelhava o choque geracional e homenageava o rei morto no ano anterior). Os primeiros campistas, os de 1996, preferirão esse, bilhetes a mil escudos, três dias, os primeiros estrangeiros no cartaz, o primeiro patrocínio, Imperial, Shed Seven, Raincoates, Lovestone, quem lá esteve tem a primeira pulseira, pode reclamar a sua parte no embrião.
A viragem no milénio
Muitos de nós já chegamos no final da década de 90, nos dois assaltos indie que iriam levantar o futuro do que Coura iria ser: 1998, um momento de luminárias pop e delicadezas, com Divine Comedy, Mark Kozelek e a emersão "sadcore" (quantos minutos durou ali o "Helicopter"?), os Tindersticks acadinhos de vestir, Stuart Staples em casaquinho de tweed branco a fazer equilibrismo de bicicleta, a levitar no recinto sobre as poças e a lama) e 1999 (a perdição de Tom Barman e dEUS a mergulhar em nós, os Suede, aquele momento do encore cortado aos Lamb, uma facada para os fãs, uma facada na crença de que os festivais não matariam os encores).
Quem chegou em 2000 viu os Coldplay às seis da tarde, viu Matt Johnson e os The The com Johnny Marr (Morrissey viria seis anos depois, e sairia sem completar o "Panic", a diva), viu o chic avant garde freak de Mr. Bungle, viu o melhor do trip hop (Sofa Surfers) e saiu com a memória ferrada para sempre na maravilhosa psicose pop alucinada em tecnicolor dos Flaming Lips de "The Soft Bulletin" (e já saiu a sonhar com as batalhas de Yoshimi contra os Pink Robots que viriam dois anos a seguir).
E o que o aconteceu em 95
Mas para a maioria, mesmo para os duros adeptos de 2003, ano de Korn, Incubus e Puddle of Mud (mas também houve Lee Perry e a única vez que valeu a pena ver Gotan Project) foi 2005, um ano artisticamente bissexto e certamente irrepetível em que todos têm na cara aquele clarão segador dos Arcade Fire e dos National, também eles em chamas (já tinham "Sad songs for dirty lovers" e "Alligators"), com Nick Cave a incitar-nos à escuridão e à fúria, imperial, a proibir ecrãs, a sorrir-nos e a dominar-nos como uma aranha preta, com Juliette Lewis toda branca de couro a assanhar, como se estivesse no fim do mundo de 1999 a apunhalar Ralph Fiennes na fúria do fim do século dos "Strange days", traidora (mas o que é que ela cantou?, mas o que é que isso interessa?) e o grande número surrealista de Vincent Gallo, um melodrama quase "slapstick", ele sentado a afiar a guitarra, um falso tímido predador, a namorada grávida à bateria e ele a dar-nos o número do quarto do hotel, a derreter ali à nossa frente, azul lânguido, os cliché do rock, um luxo na melhor noite de teatro de Coura de sempre para quem percebeu que era preciso estar lá à frente, grudado e atento nele. Além de tudo isso, um trio invencível que varreu pautas inteiras do rock and roll: Queens of The Stone Age, altíssimos, poeira, roda-punk, mosh, surf, tudo até bem dentro dos Foo Fighters e ainda os Pixies quando os Pixies ainda eram bons). Se fosse uma largada iluminada de balões ou de cometas, cada um encontraria nas noites daquele ano o seu coração e o momento em que ficou em Coura para sempre. Essa memória continua a emergir como definidora e possessiva, apesar de todos os anos ainda, mesmo depois das mudança e dos upgrades (2012, iluminado uma única vez pela EDP, um cartaz favorito para muitos millenials acabados de chegar: Chromatics, Kavinsky, Sleigh Bells, Japandroids, Of Monreal, Gang of 4, Anna Calvi), até à era moderna da Vodafone e à assunção plena do festival enquanto marca, acontecimento e garantia de qualidade, como sucede com o Primavera Sound: a marca é tão forte que se sobrepõe ao nome das bandas, a marca vende bilhetes antes de anunciar qualquer artista.
E agora: evolutivo ou em reprise?
Flexuoso como um exame elétrico da actividade do coração, capaz de evoluir nas suas reprises e no nervo novo, este ano há 38 bandas, seis delas em "after hours" - e o pico altíssimo LCD Soundsystem, onde é preciso parar mais uma vez e perguntar: quem os viu na madrugada desse ano do dilúvio de 2004 dos Strokes, Motorhead e os Kills? Muito poucos, naquele ano os LCD eram tão novos (o primeiro disco sairia no ano a seguir) que nem nas letras pequenas do infame "cartaz do pé" (um momento irrepetível de podolatria) conseguiram figurar. Tocariam tardiamente, mudados da tenda alagada pelo vento para o inesperado palco maior, para uma imensa minoria molhada que dançou "Daft Punk is playing at my house" e se eternizou a pensar nos sapatos de James Murphy e de Gene Kelly ao mesmo tempo. Hoje os LCD Soundsystem trazem três discos e um novo, a fama imensa da reunião pós-choque do fim revertido e amanhã, quinta-feira, vão ter milhares aos pés que estarão religiosamente atentos e pontuais, crentes na congregação de Murphy e no poder da sua profana "danceball, desesperados por arrebatamento. Este é o prato principal.
LCD + 37
Com o menu de novo centrado na dieta de proteínas rock e afluentes, tanto pós-rock como pós-punk, o cartaz é, para uns, evolutivo e, para outros, repetitivo, já que todos os cabeças de cartaz já ali foram pelo menos uma vez: Chvrches, The Vaccines, Thee Oh Sees, Cage The Elephant, The Tallest Man on Earth, até a banda do "dumbest name on earth" (ou será só a pior explicação de um nome de sempre?), Portugal The Man, todos já viram Coura pela frente - e esperam certamente vê-la aos pés.
No pensamento pós-Murphy (é um cartaz LCD + 37), o rock é puxado em duas ou três frentes: King Gizzard & the Lizard Wizard (são sete em palco, australianos, ferozes, quase algozes, e vêm despejar um acontecimento psych-rock: "Nonagon infinity", disco que nos prende na infinita elipse da doce acidez do rock) e Cage The Elephant - estes são implacáveis e inexoráveis, Kentucky, EUA, punk blues como quem mete numa garagem uma peça de Jean Cocteau representada pela bacia indomável de John Wayne. A terceira via é a ira benigna dos Crocodiles e dos post-punk revivals, outra é a dos Suuns (art punk e krautrock) e outra é dos The Last Internationale, a banda nova-iorquina da baixista/vocalista Delila Paz que se estreia aqui depois do Alive, estrépito, pós-grunge e alt-metal protestativo. No ano passado, abriram concertos para The Who e para o Plant.
Novo, à hora solar, seguro, Whitney, o novo segredo da poética pop, trio nascidos das cinzas dos Smith Westerns e da bateria que abandonou os Unknown Mortal Orchestra (e também os UMO mudaram e não pioraram, são as estrelas de hoje à noite, psychedelic r&b) e trazem um disco de estreia a pingar disrupção e amor. E a fechar um risco: Chvrches. Há dois anos, com a pop viral de "Gun" e "Recover" e o óptimo disco "The bonés of what you blieve", só convenceram a meia encosta da frente, que dançou desenfreada e sempre na pose de fã estrutural. Regressam agora para capturar os restantes com doçura "indietronic", strob e novo disco "Every open eye". Esperemos que a "lovely" Lauren Mayberry tenha pulmões para todos.