A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) está a "fazer um estudo sério" em matéria de saúde mental e Inteligência Artificial com o propósito de "criar um conjunto de recomendações prévias para especialistas e utentes". Guia "tem de sair ainda este ano" para ajudar todos a lidarem com esta nova realidade
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O recurso à Inteligência Artificial (IA) para procurar respostas em matéria de saúde mental é já um dos maiores usos da tecnologia que está a ser feito pelos utilizadores e que está a deixar os psicólogos em alerta. O presidente do Conselho da Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), Miguel Ricou, revela que esta estrutura profissional está em campo nesta matéria para atuar o mais breve possível em Portugal, ainda que não existam dados concretos sobre o volume de pessoas que se está a socorrer-se da IA para aceder a 'terapia'. "
"Estamos a fazer estudo sério sobre o assunto no sentido de criarmos um conjunto de recomendações prévias que saiam em breve e que sejam quer para especialistas e quer para o público". O responsável fala num "grupo de trabalho" que a OPP tem em campo e do qual deverá sair um guia prático. Não há prazos, mas Ricou é claro: "Tem de ser ainda este ano, temos de andar rápido nesta matéria", explica o presidente do Conselho da Especialidade à Delas.pt.
Da pseudorrelação à recolha de dados "altamente pessoais"
O crescente recurso à IA e o uso como eventual terapia acarreta ameaças. Para Miguel Ricou, há dois perigos que ressalta, desde logo. "A IA permite, com isto, que se possa criar uma espécie de pseudorrelação que mimetiza, muito bem, a interação entre duas pessoas, mas que não é real", empurrando, a prazo, para o risco de "uma desilusão", refere o especialista.
E uma vez aí chegados, "podemos ter uma pessoa que, de repente, não tem chão porque contava com aquilo". Ou seja, a eventual vinculação com a IA para estes fins "acaba por ter um efeito paradoxal, o que pode levar as pessoas a criarem uma espécie de dependência da validação que o chatbot lhe pode dar", acrescenta Ricou., mas não para sempre. "Isto causa, evidentemente, um fugir da realidade total. Entretém, valida coisas que se calhar não deviam ser validadas e invalida outras que não precisava", alerta o especialista, chamando à atenção para o facto de "estes chats serem feitos para serem empáticos", e não para diagnóstico ou terapia.
Num segundo nível, o presidente do Conselho da Especialidade da OPP alerta para o facto de "estes chatbots irem aprendendo com o que lhes é apresentado". "Estamos a fornecer um conjunto de dados altamente pessoais, quando, noutros aspetos da vida, temos tanto cuidado com o que queremos proteger e mostrar", sublinha, lembrando que "não há almoços grátis".
Esta ajuda da IA tem outras camadas por trás às quais é preciso prestar atenção. "Apesar de um agente de IA não fazer julgamentos, nenhuma intervenção destas é totalmente neutra"., atesta Ricou. "Estamos a passar todos estes dados a este algoritmo e em proveito da empresa que as desenvolve e não em nome das pessoas que a procuram", alerta o psicólogo.
Portugal sem números, mas com relatos de 'paixões'
Sem se conseguir traçar a preceito o volume de pessoas em território nacional que já recorre a este tipo de ajuda, Miguel Ricou cita os dados internacionais para dar, desde logo, uma pincelada sobre o que pode estar à acontecer por cá. "A nível mundial, sabe-se que, atualmente, o primeiro nível de utilização da IA é essa [saúde mental]", contextualiza.
Naquilo que é a sua prática clínica, o presidente do Conselho da Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde diz ainda não ter sido confrontado com nenhum caso. Contudo, alerta para a existência de "relatos de pessoas que se apaixonaram por estes modelos de IA e de criação de relações com vinculações um pouco patológicas". Em jeito de comparação, Ricou considera que este uso da IA "é muito mais preocupante do que, por exemplo, a polémica recente que houve em torno dos bebes reborn" porque, no primeiro caso, "as pessoas normalizam com mais facilidade".
Num país com baixos rendimentos e em que a saúde mental fica tantas vezes para trás, não estará o recurso à IA estar à mão de semear e a ser acessível? Ricou reage: "Gratuito não será, de certeza. Este uso da IA paga-se é de outra maneira." Por isso, o especialista apela à urgência da prevenção "como a forma mais barata de tratamento" e à "facilitação no acesso" a terapia.