Se voltasse a escrever o livro 'Medo', Maria Hesse traria agora também os temas da maternidade e da desumanização. No regresso a Lisboa, nove anos depois, critica que a cidade pareça "um parque temático" e vinca que os centros das cidades devem pertencer aos habitantes e não aos turistas. Numa conversa ampla, a ilustradora espanhola pede às mulheres "menos sensação de culpa"
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"Sou mulher e feminista, e vou ser sempre assim". A ilustradora Maria Hesse traz à luz as suas lutas e o método que foi usando para se fazer ouvir e dar voz a Mulheres más, mas também a Prazer ou ao Medo, livros que compôs e pintou.
Numa passagem por Portugal, a autora espanhola de 43 anos apontou de frente ao que considera estar mal: da desumanização à sensação de culpa da maternidade, passando pela guerra e tocando num ponto fulcral da sociedade: a habitação e a falta dela. "Não há políticas que a protejam como um direito fundamental das pessoas", acusa a ilustradora a partir do Parque Eduardo VII e a olhar para uma Lisboa que, nove anos depois de uma primeira visita, lhe parece agora "um parque temático", com cada vez mais turistas e menos habitantes.
Maria Hesse, sem medos, faz um olhar transversal à sociedade que integra e deixa alertas e pedidos às mulheres em particular.
Se hoje tivesse que escrever de novo o livro Medo, acrescentaria algum novo em particular?
Acrescentaria, sim. Suponho que juntaria muitos medos em relação à maternidade, agora que sou mãe. O medo da guerra já aparece no livro. Mas talvez o medo da desumanização porque acho que estamos a viver uma época muito estranha e muito desumanizada. Estamos a ver as barbaridades que estão a acontecer e nós, seres humanos, não estamos a fazer nada. Mas acho que também juntaria muitos medos em relação à maternidade porque acho que quando não se tem ninguém alguém que depende de nós, somos mais livres de tomar decisões, de fazer, de como se mover. Agora, tendo um filho, preocupa-me muito o seu bem-estar, que ele seja feliz, que esteja bem, que a vida seja boa.
Por que sente necessidade de transportar o seu momento e experiência de vida no desenho?
Tinha a necessidade de desenhar para mim, para me compreender. E o Medo acabou por ser um livro. A minha editora viu e considerou que poderia ser interessante. Com os livros Prazer ou Mulheres Más havia uma intenção de reivindicação, de contar a história, mas não tinha consciência de que chegaria muito público. Com o Medo, foi algo que comecei a desenhar para mim, porque necessitava, não entendia muito bem.
Foi um processo terapêutico?
Foi um processo de acompanhamento, porque tive uma terapia paralela, que foi o que realmente me ajudou, mas é verdade que qualquer terapia que se faça, escrever o que te acontece, ou o que te aconteceu, ajuda. Qualquer pessoa que esteja a atravessar um mau momento, não deve ter problemas em escrever, sem necessidade de escrever bem, escrever, desenhar, ou o que for. Com o Prazer, aconteceu-me o mesmo. Fiz o livro como uma reivindicação, quando eu comecei a escrever, e a partir da minha história pessoal, o facto de me fazer parar e pensar tinha sido a minha educação sexual, ajudou-me muito a entender-me, a compreender-me. A minha forma de viver a minha sexualidade também mudou depois de fazer o Prazer. Eu pensava que estava tudo sob controlo na minha sexualidade, sabe? Mas o facto de escrever ajudou-me a compreender muitas coisas.
O Prazer foi mais revolucionário na sua vida do que o Medo?
A nível pessoal, o meu livro o mais arriscado e o que eu mais gosto de fazer, e o que é maior, e o que eu acho que foi mais longe foi o Medo. Porque, além disso, é diferente, tem comédia, é muito visual, é mais poético. Para mim, é o meu favorito. A nível profissional, o Prazer, foi muito importante porque foi uma mudança.
Uma afirmação da sua voz ativa?
Exato. Tinha feito biografias de personagens [Frida Khalo, Marilyn] e, de repente, fazia algo que me apetecia contar, que já não era uma biografia, que era uma voz ativa dentro do feminismo. Nas redes sociais era bastante ativista.
Quando olha para trás e recorda esse lado ativista, ele ainda está aí e o que quer fazer com ele?
É um ponto importante para mim ser ativa, em geral, dentro do feminismo, e não só com o feminismo, mas não ser uma mera observadora. Ser ativista vai além de escrever um livro, está no dia a dia, na forma como nos comportamos e fazemos as coisas. Creio que isso está nas mãos de todo mundo. Eu tenho a oportunidade de, através do meu trabalho, ter uma voz audível e a utilizar para as causas que considero justas. Não só com o feminismo, evidentemente sou mulher e feminista, e vou ser sempre assim.
Que outras causas analisa?
Por exemplo, em Espanha, em Portugal também e em todo o mundo, também há um problema terrível coma habitação. Nas redes sociais tenho vindo a falar muito sobre isso porque me parece que não há políticas que protejam a habitação como um direito fundamental das pessoas. Não digo que venha a ser um livro, mas um tema possivelmente. Falando sobre o tema da casa, vejo muitas mudanças aqui em Portugal. Vim em 2016 a Lisboa e já havia muito turismo, mas não era como agora.
O que sente?
Sinto que estou num parque temático.
Um parque de diversões?
Sim. Mas isto também com o centro de Madrid e de muitas cidades. Está cheio de turismo, de lojas de souvenirs. Entristece-me que não se pare esta situação. Acho que se deveria controlar porque, no centro das cidades, têm que viver as pessoas, não os turistas.
Como ilustradora, como olha para o desafio da inteligência artificial?
Há uma parte de mim que quer acreditar que não vai prejudicar os ilustradores, mas a realidade é que se está a utilizar já para, por exemplo, em Espanha. Não sei como é aqui [em Portugal] para fazer capas de livros, cartazes... Depois, há coisas que eu vi como muito curiosas, como por exemplo, o que aconteceu a nível mundial, em que houve gente que transformou fotografias em imagens.
Os Estúdios Ghibli.
Sim, muitas dessas pessoas que o fizeram eram até profissionais que se dedicavam a algo criativo, à música, ao cinema. Não viram como algo que estivesse a causar prejuízo, mas é terrível, porque na realidade estavam a roubar o Estúdio Ghibli para criar uma imagem que é feita por uma máquina de forma gratuita. É muito perigoso.
Ficou surpresa por ver pessoas, por ver profissionais da arte, a usarem e fazerem isso?
Claro, fiquei impressionada, porque acho que é muito egoísta e muito pouco empático. Estão a acontecer muitas histórias. A tradução, por exemplo, os tradutores estão a perder o trabalho. Mas eu digo, eu vou fazer o meu projeto, vou usar a inteligência artificial, não vou contratar ninguém. Então, eles que são criativos, e que sabem e sabemos o quão difícil é viver no mundo criativo, impressiona-me que não se tenham questionado, porque o que estão a fazer é prejudicial para todos. Houve uma fase em que trabalhava, por exemplo, a fazer retratos personalizados para as pessoas, que eram presentes. Imagine, se agora eles colocassem os meus traços, o meu estilo, na inteligência artificial, eu ficaria sem trabalho. Porque me iriam contratar se conseguiriam que a máquina fizesse grátis?
O que pode ser feito?
Bom, o primeiro passo é controlar para que não se possa plagiar, que a inteligência artificial não se possa nutrir do trabalho de outros criadores, que isso é o que faz, não? Usa tudo o que existe na Internet de outros criadores e copia-os. Então, primeiro é preciso proteger os direitos de autor. As pessoas também têm de fazer algo, também têm que ser educadas para entender que isso não está bem. Também me horroriza ver como se fazem fotos, como se criam imagens de pessoas famosas.
Falamos do deepfake?
Isso parece-me terrível. Imagine que com a sua cara, põem biquíni, fazem tudo, tudo. Sobretudo com as mulheres, é terrível. Também me parece importante, independentemente de como se tenha de regular, que as pessoas não reflitam sobre isso, como pode ser que de repente se crie uma imagem erótica sua.
Às vezes pornográfica.
Pornográfica, sim.
Recentemente, fez a ilustração do livro de Anne Frank. Vai continuar por esse caminho com outros livros de mulheres, de personalidades?
Já ilustrei o diário de Anne Frank, como em Espanha tinha ilustrado o livro Mulherzinhas, Orgulho e Preconceito e Ana dos Cabelos Ruivos. Tenho ilustrado clássicos. O de Anne Frank foi-me proposto, parecia-me muito interessante e muito necessário. Ilustrar é dar uma nova vida.
Vai fazer mais?
Se tiver uma proposta interessante, sim, claro. Tenho tido muita sorte porque ilustrei o Diário de Anne Frank, mas também ilustrei Mulherzinhas, que é um dos meus livros favoritos. Também rejeito propostas, se não me interessam os livros, alguns interessam-me menos, mas, em geral, acho que me conhecem bem e me apresentam coisas bonitas.
O que procura agora?
Agora, também comecei a pintar em telas grandes, voltei ao estúdio. Era algo que me apetecia muito. Preciso fazer coisas diferentes. Por vezes, quando um tema que funciona e fica fácil ficar nessa temática. Por exemplo, quando fiz o Prazer, era uma temática que funcionava muito bem nas redes sociais. Podia ter continuado a falar do prazer feminino, mas já fiz o livro, abri, larguei, e canso-me. Preciso de explorar coisas novas. Pintar em grandes telas é o que mais me apetece, na verdade. Agora que sou mãe, tenho muita necessidade de falar da maternidade, do lugar que eu estou a viver.
Que mensagem gostaria de dar às mulheres?
Vivemos momentos estranhos, mas juntas somos mais fortes. Acho que esse é a mensagem mais clara que deveríamos ter. No tema da maternidade, que se afastem não somente do medo, mas da culpa, da sensação de culpa de tomarem uma decisão, qualquer que ela seja. Sou consciente de que toda a gente tem medo, porque às vezes, quando se tem medo e não se verbaliza, parece que é algo que só acontece a si, e não é assim. Todos temos medo porque a vida tem as suas luzes e as suas sombras.