Dame Dibaba fugiu da perseguição política na Etiópia a correr. Atravessou África a caminhar, o Mediterrâneo de barco, a Europa como calhou. Foi para a Inglaterra. Correr é o que assegura alguma normalidade a uma vida sem registos.
Corpo do artigo
"O milho estava alto e eu não conseguia ver o guarda, pelo que decidi que ele também não me conseguia ver. Baixei-me e corri devagar, até ao fim do campo. Conseguia ouvi-los gritar mas olhei sempre em frente e continuei a correr".
Sim, esta história é aquilo que parece. É a de Dame Dibaba, um etíope que (sobre)vive num subúrbio londrino, onde chegou ao cabo de uma aventura que começou por ser corrida para se transformar na mais dura das viagens. Na sua cidade de Ambo, era perseguido por questões políticas com que não tinha nada a ver, só porque é da etnia Oromo, a maior do país (35% da população), mas também a mais reprimida. Foi preso, libertado, perseguido e de novo preso. Até que, num saída para trabalho no campo, iludiu os carrascos fazendo-se de vento a varrer o milho, numa corrida desenfreada que será, provavelmente, recordista, tivesse sido medida.
Correu, correu, correu. Depois caminhou. Dormiu em beiras de estradas ou arrecadações, trabalhou para comer e avançou, sempre, pelo triste caminho da migração clandestina.
A história de Dibaba é contada pelo jornal britânico "The Guardian", que deu por ele na meta de uma brincadeira suburbana de 5 K, a Beckenham Park Run. E deu por ele porque, do nada, arrecadou o recorde da prova: 15 minutos e 58 segundos, numa prova nada habituada a elites.
Mas que elite? Dibaba vive, diz ele, como um "fantasma". A aguardar um qualquer estatuto, é quase pária, não fosse a história colocá-lo, em bebé, numa aldeia de Ambo, a escassos quilómetros da co-capital (com Nairobi) da elite mundial do atletismo, Adis Abeba, num país onde os Oromos são mortos por dizerem a sua opinião (mais de 700 em 2016). Não tem vida, nem tem direito à habitação, nem a trabalhar. Mas tem sorte.
Da Etiópia atravessou para o Sudão, daí para a Líbia, o Mediterrâneo, Itália, França até lá acima, até à tristemente famosa "Selva de Calais". Diz que nem tudo é o inferno é que alguns passadores são boas pessoas, prontas a ajudar. Conta de uma viagem quase esmagado num porão, entre vómitos de pessoas e de máquinas, durante 19 horas. Conta de dias repetidos de tentativas de fugas por cima das cercas do norte francês, atrás de um esconderijo num camião a caminho do sonho britânico. Tem sorte, Dibaba, até nisto.
Neste vai não vai, foi apanhado pelas câmaras da BBC e acabou no documentário "Êxodo: a nossa viagem continua". E foi acolhido por uma família de Lewisham. Vive com eles há um ano, de caridade. E não se queixa do atraso das legalizações, nem do sistema de imigração. Recebeu três prendas: uma inscrição nos treinos de corrida no parque local, aos sábados à noite, outra no clube de atletismo de Kent (Kent AC) e um par de sapatilhas. Em Junho, começou a correr. Diz quem o viu que é "impressionante".
A integração pela corrida
"É muito cedo para dizer se pode melhorar e chegar ao topo, mas está a fazer enormes progressos. Consigo imaginá-lo a brilhar na distância de 10 K e no corta-mato", contou o treinador do clube ao jornal. E a verdade é que já é lebre dos veteranos nos treinos longos de domingo. Porque descobriu que correr é o que preenche o vazio da espera. Sem objetivos de liderança, apenas porque sim, enquanto vai aprendendo algum inglês.
"Quando corro, tento esquecer todos os problemas até chegar à meta. Se as memórias e a tristeza vierem à cabeça, as minhas pernas vão falhar e a minha velocidade vai baixar".
Correr, ensina-nos Dibaba, pode ser um elemento agregador. É o líder da equipa no que toca a alguns desempenhos e recebe dos outros o sentimento de pertença a um país nas antípodas do dele. "Todas estás boas pessoas estão a ajudar-me, mesmo quando parece extremamente difícil encontrar um destino para a minha vida".