Na primeira grande entrevista, após ter guiado o Famalicão à Liga, Carlos Pinto partilhou as emoções da sua segunda subida de divisão consecutiva, depois de na época passada ter atingido o mesmo feito com o Santa Clara. Aos 46 anos, o treinador evita as comparações de sucesso com Vítor Oliveira, mas reconhece estar mais maduro para abraçar voos maiores numa carreira dedicada à estabilidade familiar, em que os quatro filhos são alavanca para o sucesso.
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Quando em março aceitou o desafio do Famalicão tinha a convicção que, depois, estaria a dar esta entrevista sobre a subida de divisão?
Sentia que iria acontecer. Na primeira palestra, defini sete jogos para tal, e os jogadores ficaram a olhar para mim. A verdade é que o conseguimos em cinco jogos.
Este era um projeto de risco?
A qualidade do plantel deu-me segurança. Tanto o Sérgio Vieira [anterior treinador] como a administração formaram um grupo muito bom. Mas, mesmo conhecendo bem esta LigaPro, havia sempre um risco. Quando cheguei, a equipa estava em segundo lugar, e com apenas dois pontos de vantagem para o terceiro, e tinha adversários muito fortes. Creio que conseguimos superar as expectativas.
Os festejos na cidade suponho que jamais os esquecerá...
Superaram tudo o que pensava. Quando saímos do estádio, não tínhamos a noção do que íamos encontrar na receção na Câmara. Ver toda aquela multidão é algo que fica para a vida. Aliás, várias vezes disse a estes jogadores que tinha inveja deles, por estarem a jogar perante cinco mil pessoas. Apetecia-me também entrar em campo e viver, no relvado, o ambiente.
Ser campeão é um objetivo?
Só podemos controlar o que vai acontecer nos nossos dois jogos, e queremos atingir o objetivo das oito vitórias consecutivas. Se isso nos der o título seria fantástico, mas reconheço que é difícil, porque estamos a falar de um Paços de Ferreira de muita qualidade.
Gostaria de continuar no Famalicão na próxima época?
O que quero é ter emprego na próxima época. Se puder ser aqui era bom, mas se for noutro clube não é problema. O meu objetivo imediato é tirar o terceiro e o quarto nível de treinador, porque isso vai-me permitir estabilizar nesta profissão e poder, depois, falar de outros voos. Tenho quatro filhos e é a pensar neles que trabalho.
É por isso que traz sempre uma fotografia deles na sua capa de treinador?
É uma maneira de, tanto nos jogos como nos treinos, tê-los sempre perto de mim. Aliás, a minha superstição no futebol é dar-lhe um beijo antes e depois dos jogos. São a minha alavanca para ter sucesso nesta profissão.
A sua única experiência como treinador na Liga aconteceu no Paços de Ferreira [em 2016], mas não correu bem. Foi uma aposta prematura?
Não creio que tivesse sido prematura. Tinha o sonho de treinar o clube do meu coração e ter sucesso, mas cometi erros. Tinha de ter uma liderança diferente. Mas cresci, estudei e aprendi muito, e hoje sou um treinador mudado.
Sente-se com estofo para um novo desafio na Liga ou no estrangeiro?
Estou mais preparado para isso, tanto tecnicamente como em comportamento no que diz respeito às decisões de arbitragem. Deixei de ter uma postura tão agressiva, porque percebi que ser um treinador sereno também é uma estratégia para passar confiança à equipa. Confesso que sinto vergonha de vários comportamentos que tive com os árbitros.
O facto de, nessa altura, não ter o nível técnico exigido para surgir como treinador principal contribuiu para essa postura?
Fui um pouco perseguido por essa situação. Quando estive no Santa Clara tentaram provocar-me desequilíbrios, e devia ter sido mais inteligente. Percebo, agora, que essas estratégias fazem parte do jogo. Em tom de brincadeira digo que, na época passada, devo ter sido o treinador que mais dinheiro deu à Liga, foram 10 mil euros de multas.... Esta época orgulho-me de não ter uma expulsão ou uma reprimenda do árbitro no banco, nem de ter um jogador expulso.
O Vítor Oliveira disse algumas vezes que prefere um projeto com grandes ambições na LigaPro, do que um de permanência na Liga. Partilha essa ideia?
Respeito muito o Vítor, mas penso de forma diferente. Um treinador que suba ou seja campeão na LigaPro, o máximo que pode, a seguir, almejar na Liga é um clube do meio da tabela para baixo. Mas se nesse trajeto fizer um bom trabalho, pode, depois, atingir um patamar mais elevado. É uma questão de oportunidade.
Como lida com as comparações que lhe fazem com o Vítor Oliveira, depois de ter conseguido duas subidas consecutivas?
Não gosto muito, até porque o Vítor é único. Conseguiu coisas que dificilmente serão igualáveis nas próximas décadas. É um exemplo, mas evito comparações. Fico feliz por, sendo um treinador jovem, já ter tantas coisas no currículo e de nunca ter sido despedido.
O que não correu bem no início da época, na Académica, que muitos apontavam ter o melhor plantel do campeonato?
Não concordo, acho que os melhores plantéis eram do Paços de Ferreira, do Famalicão e Estoril. Saí da Académica pelo próprio pé, porque não me estava a identificar com o projeto. Achei que era o momento certo para deixar, e saí a bem com todas as pessoas.
Estava à espera deste convite do Famalicão para regressar?
Para regressar tinha de ser um projeto de subida, e só havia três: Paços de Ferreira, que para mim era uma carta fora do baralho, Famalicão e Estoril. Tive convites de outros clubes, mas acabei por rejeitar. Felizmente tinha alguma estabilidade financeira para escolher um projeto de sucesso, porque se não tivesse talvez fosse "obrigado" a ir para outro clube.
O Famalicão tem potencial para se estabilizar na Liga e lutar por ambições europeias, como foi assumido pela administração?
Quando existe uma estrutura sólida, boas condições de trabalho, e um forte suporte financeiro as ambições são ilimitadas. Compreendo que possa parecer estranho para alguns ouvir um clube que subiu agora, já falar na Europa, mas a estabilidade do Famalicão permite pensar assim.
Quem são as suas referências como treinador?
O Leonardo Jardim, que me treinou, como jogador, em Chaves, e que me identifico no seu rigor, disciplina e caráter. Mas o treinador português que mais gosto é o Jorge Jesus. Tenho uma ideia de jogo semelhante, e admiro a sua frontalidade, mesmo quando é criticado. É um regalo ver a qualidade que coloca nas equipas.
O que faltou na sua carreira de jogador para ter ido mais longe?
Várias vezes digo aos meus atletas para não serem como o Carlos Pinto jogador. Podia ter ido mais longe, desportiva e financeiramente, mas facilitei. Tinha qualidade, mas nem sempre fui um bom profissional. Não por uma vida desregrada, mas porque não treinava como devia. Só comecei a levar o futebol a sério a partir dos 30 anos, no Feirense, onde cheguei a capitão e conquistei respeito.
A sua única experiência na Liga como jogador foi no Salgueiros, onde jogou com o Deco...
Sim, estive com o Deco e, nessa altura, já se via que ia ser um dos grandes do futebol. Mas dessa equipa destaco também o Abílio, um jogador de eleição. Várias vezes gozávamos com ele, dizendo que era o que menos trabalhava e o que mais rendia nos jogos [risos].
Falou do Paços como um clube do coração, conseguiu aproveitar todos os momentos de ser jogador e treinador do clube?
Era um sonho que eu e a minha família tínhamos. Quando assinei pelo Paços, as lágrimas vieram-me aos olhos e o meu pai estava elétrico. Morei a 50 metros do estádio, fui apanha bolas, atleta e treinador, mas a sede de ter sucesso fez com que as coisas não tivessem corrido bem, até a nível pessoal. Já disse que não voltarei a treinar o Paços, e já me criticaram por isso.
Sendo de Paços de Ferreira, tem alguma ligação aos móveis?
Claro, se não fosse o futebol estaria a trabalhar nos móveis com o meu pai e o meu irmão, que continuam no ramo. Com dez anos já ajudava o meu pai; nem tive tempo para estudar. Felizmente as coisas têm corrido bem no futebol. Tenho conseguido proporcionar o que os meus filhos precisam e ter a sorte de poder levar os meus pais a uns merecidos dias de férias.
BI:
Carlos Pinto
Data de nascimento: 02/03/1973 (46 anos)
Cargo: Treinador do Famalicão
Percurso: Tirsense, Freamunde, Tondela, Chaves, Santa Clara, Paços de Ferreira, Académica e Famalicão
Palmarés: Campeão do CNS com o Freamunde (2013/14), Subida à Liga com o Santa Clara (2017/18) e com o Famalicão (2018/19)