No dia em que se completam 35 anos da final de Viena, Futre recorda, em entrevista ao JN, o jogo mítico que valeu ao F. C. Porto o primeiro título europeu. Memórias na primeira pessoa de um triunfo que ficou para a história.
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A final de Viena continua bem presente na memória?
Foi um jogo inesquecível. Artur Jorge estava certo quando nos disse ao intervalo que tínhamos 45 minutos para entrar na história. Entrámos mesmo na história e a prova é que, 35 anos depois, estamos aqui a falar dessa final. Não posso deixar de me recordar dos amigos que já cá não estão, como o Zé Beto e o Lima Pereira, o meu amigo Tardeli, como lhe chamava. Ou de Reinaldo Teles e Teles Roxo. Estou certo de que estão muito felizes lá em cima, como eu um dia estarei quando para lá for.
O Bayern era, de longe, considerado o favorito...
Nas semanas anteriores à final, o que vinha lá de fora, sobretudo da Alemanha, era que íamos ser goleados. Eu sentia raiva, não tenho problemas de o assumir, e só queria que o jogo começasse depressa. Depois, quando o Fernando Gomes se lesionou, tive de ir andar na praia de Espinho, a ver se acalmava. Tinha de jogar por mim, por ele e pelos outros jogadores que se lesionaram, como o Lima Pereira, o Jaime Pacheco ou o Casagrande. Mas o Gomes era a nossa referência. Eu e ele formávamos uma dupla imparável. Foi uma baixa muito importante, mas aquela equipa tinha tanto orgulho e caráter...
A final da Taça das Taças, perdida em 1984, ainda estava atravessada no clube?
Nunca tocámos no assunto. Do onze inicial, só quatro jogadores repetiram a titularidade [João Pinto, Eduardo Luís, Sousa e Jaime Magalhães], mas nem era por isso que não se falava. Naquele balneário, não interessava se o F. C. Porto tinha feito um grande jogo com a Juventus porque a verdade é que tinha perdido. Jogar bem e perder era uma expressão que não fazia parte do nosso dicionário.
O F. C. Porto não começou bem em Viena...
Começámos mal, mas o Bayern não foi superior na primeira parte. Não teve ocasiões claras e teve a sorte de marcar aquele golo num lançamento lateral. Nós criámos algumas oportunidades e o empate seria mais justo ao intervalo. Quando chegámos ao balneário, estávamos de rastos, mas quem vir o jogo pode reparar que não estávamos a ser dominados.
Como estava o ambiente no balneário ao intervalo?
Desde a meia-final com o Dínamo de Kiev, tinham sido cinco semanas a levar com a conversa de que íamos ser goleados. Havia quem dissesse que perder por 1-0 já não era nada mau. Mas Artur Jorge não estava a fazer bluff quando nos disse que tínhamos 45 minutos para entrar na história. Quando ele disse que ia entrar logo o Juary, eu vi que estava a falar muito a sério. E a verdade é que aquela palestra rebentou com os alemães. Ganhámos o jogo ali.
Consegue descrever a segunda parte?
Os jogadores do Bayern foram abafados. Nem respiravam. E a verdade é que, passados estes anos todos, eles sempre fugiram de falar sobre aquela final. Tinham tudo a favor. Estavam a ganhar ao intervalo, tinham o público quase todo do lado deles... Em 35 anos, nunca falaram do banho que levaram. Têm pesadelos quando se lhes fala do F. C. Porto. Eu também os tenho com Marrocos e com aquele jogo de Portugal no Mundial do México, que perdemos por 3-1, mas depois de me retirar perdi o medo de falar nisso. Mas os alemães têm pesadelos connosco. Nem a pesquisar no Google se encontra algum a falar daquela final. Foi a maior humilhação que o Bayern levou na vida e eles nunca nos deram o mérito que merecíamos.
Aquela jogada individual do Futre é mesmo digna do melhor do mundo, com uma finalização da distrital?
Essa frase é do meu pai e eu revelei-a pela primeira vez só em 2011. Depois de chorar de alegria, ele veio ao pé de mim no aeroporto e disse-me aquilo, que eu tinha de treinar mais porque aquela finalização era da distrital. Aquilo parecia uma assistência para o Madjer, mas só eu é que sei o ridículo que tinha feito. Foi uma jogada de génio, de melhor jogador do mundo, mas a finalização... Já foi considerada a melhor jogada de sempre numa final da Taça dos Campeões que não deu golo. Para mim, não conta. Tinha de ter marcado. Ainda bem que não nos custou a vitória, caso contrário eu ia ser massacrado até sair do F. C. Porto.
O golo de calcanhar de Madjer surpreendeu-o?
Nós estávamos a dominar, mas depois do meu lance individual eles ficaram em pânico. A jogada do empate é criada pelo Frasco e pelo Juary, dois jogadores que tinham entrado na segunda parte. Isso diz tudo sobre a nossa equipa. Nunca desistíamos também pelo banco que tínhamos, isto sem contar com os lesionados que não puderam jogar. Quanto ao golo, o Madjer podia ter dado a volta e marcado com o pé esquerdo. Estou a dizer isto e a ver-me ainda lá no relvado. A jogada foi toda ao contrário do que devia ter sido. Como é que ele fez aquilo? Fiquei sem ar. Não era um jogo com uma equipa pequena. Estava todo o planeta a ver e ele sai-se com aquele toque de calcanhar. Só um génio seria capaz. Madjer era muito frio, nunca sentia a pressão de nada. Não é faltar ao respeito, mas num momento assim nem Maradona, nem Pelé, nem Messi fariam uma coisa daquelas.
E a reviravolta chegou logo a seguir...
O 2-1 nasce do maior nó que alguma vez vi um defesa levar. E eu seguia desde pequeno o Chalana, que deixava adversários no chão só com um movimento de cintura. Naquele lance, o Madjer entortou o alemão todo. Como eu já disse algumas vezes, entrou-lhe um cabide nas costas e ele nem sequer caiu. Não sei onde aquele rapaz jogou depois. E após a finta, o Madjer ainda conseguiu num último esforço fazer aquele cruzamento de génio com o pé esquerdo, que era o pior dele. É um cruzamento terrorífico para qualquer guarda-redes e o "malinha", como chamo ao Juary, meteu a bola lá dentro. O golo de calcanhar revela uma frieza mental incrível, mas a jogada do 2-1 é do outro mundo também. Para mim, tem tanto valor como o 1-1. Só o Madjer podia fazer aquela jogada perfeita.
Madjer foi o homem do jogo?
Eu fui considerado pela UEFA o melhor jogador da final, mas sim, para mim, ele foi o homem do jogo. Eu empurrei os alemães para trás, saquei amarelos, fiz aquela jogada que os deixou em pânico, talvez mereça nota 9,5 pelo que fiz, mas o Madjer merece nota 10.
Os minutos finais custaram a passar?
A verdade é que não sofremos muito depois do 2-1. O Mlynarczyk ia buscar as bolas todas que eles atiravam pelo ar para a nossa área e os centrais limpavam as outras. Toda a gente esteve muito bem. Nos minutos finais, eu e o Juary ainda tivemos o 3-1 nos pés. No meu caso, parecia uma bola fácil, mas o Pfaff, que na altura era um dos melhores guarda-redes do mundo, foi sacá-la com o pé. Na segunda parte, o Bayern não teve hipóteses, quando esteve a ganhar, a empatar e a perder.
A final abriu-lhe o caminho da transferência para Madrid?
Eu era conhecido em Espanha porque já tinha estado perto do Atlético de Madrid em 1985. Tinha brilhado nos jogos com o Dínamo de Kiev, mas esses jogos não foram vistos por muita gente na Europa. Não havia internet, em Portugal só havia a RTP. A final foi diferente. Todo o mundo do futebol viu e aquele jogo fez o Gil y Gil ganhar as eleições para a presidência do Atlético. Os adeptos "colchoneros" viram aquela jogada e ele anunciou que, se ganhasse, me levava. Limpou as eleições com grande vantagem.
Viena mudou-lhe a vida?
Mudou, como mudou a de outros jogadores. Para além do prestígio que deu ao F. C. Porto, colocou-nos no mapa do futebol europeu e mundial. Quem não era do Bayern, torcia por nós e ficámos ainda mais conhecidos. Quando cheguei a Madrid, recebia 2000 cartas por semana, de gente da China e da Austrália. Até àquele jogo, recebia 10 vezes menos e só de adeptos portugueses.
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