Atletismo impediu atletas "trans" de competir nas provas femininas e reacendeu discussão complexa.
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A inclusão de atletas transgénero no desporto feminino continua a ser uma fonte de debate que promete não acabar tão cedo, ainda mais agora, quando o atletismo feminino barrou as portas e fez reacender a discussão. O tema não é novo, mas ganhou outra força em março do ano passado, quando a nadadora norte-americana Lia Thomas começou a competir na categoria feminina e se tornou na primeira transgénero a vencer um título nacional da liga universitária dos Estados Unidos. O que parecia ser uma conquista à integração depressa se tornou num debate aceso, com algumas críticas à mistura feitas por adversárias. "Passámos horas na piscina a treinar. Para que, depois, nos fosse retirada a vitória por alguém que, apenas um ano antes, nunca se teria sequer qualificado para esta competição como homem? Foi uma bofetada na cara", disse a nadadora Riley Gaines, depois de ver Lia Thomas a conquistar o título.
A verdade é que meses depois, em junho de 2022, a Federação Internacional de Natação (FINA) decidiu apertar as regras com as atletas transgénero: proibiu-as de participar nas competições femininas, a não ser que provassem não ter passado pela escala 2 de Tanner, uma escala científica para aferir a maturação sexual e desenvolvimento corporal da puberdade masculina.
Agora, as águas voltam a agitar-se após a World Athletics, organismo mundial do atletismo, impedir, desde ontem, que os transgénero compitam nas competições femininas, se o processo de mudança de sexo tiver começado depois da puberdade. O regulamento pedia às atletas "trans" que mantivessem a taxa de testosterona abaixo de 5 nmol/L durante um ano, mas agora o controlo das taxas deixou de ser suficiente. Por um lado, apela-se ao papel de inclusão, uma máxima olímpica do desporto. Por outro, puxa-se a cartada da ciência e fala-se em questões fisiológicas e de uma "vantagem" que as atletas podem ter por terem vivido a puberdade enquanto homens. "Podem existir diferenças", começa por nos explicar Henrique Jones, médico ligado à medicina desportiva.
"No caso de mulheres transgénero, devido ao facto de terem tido um desenvolvimento pubertário com o sexo masculino, as características das fibras musculares têm uma orientação masculina. Estes parâmetros, naturalmente potenciados pelo treino, têm importância nos resultados desportivos. Isto poderá favorecê-las, sobretudo em modalidades com predomínio da força e resistência. Mas existe falta de evidência científica. A maioria dos estudos são realizados em atletas de baixa atividade física e não em atletas altamente treinadas. É preciso estudar mais", acrescenta.
Já Daniela Bento, que faz parte da direção da Associação ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo), apela a conversações e lembra que, com a atual lei, em Portugal, por exemplo, nenhuma atleta transgénero poderá jamais competir. "Podiam procurar uma solução juntamente com as associações que trabalham com as pessoas transgénero. Falta essa conversa. Caso contrário torna-se uma decisão unilateral. Em Portugal, a pessoa pode fazer a hormonização só a partir dos 16 anos e cirurgias irreversíveis aos 18. Assim, nenhuma rapariga trans poderá competir. E isso é uma descriminação de fundo".
Proibição em Portugal
Mesmo não havendo, até à data, atletas transgénero em Portugal, a Federação Portuguesa de Natação seguiu o exemplo da FINA e proibiu que atletas "trans" compitam na categoria feminina.
"É uma questão de justiça na competição desportiva", justifica, ao JN, o presidente António José Silva. A mesma opinião é partilhada por Jorge Vieira, líder da Federação Portuguesa de Atletismo: "Permitir atletas transgénero a competir na categoria feminina cria injustiças e quebra o grande princípio da competição, que é a igualdade de oportunidades. Um homem que faz um tratamento hormonal para passar para o género feminino, segundo os estudos feitos, mantém características masculinas e isso quebra o princípio da igualdade de oportunidade. Estamos de acordo com a decisão da World Atlhetics".
Outros casos
Laurel Hubbard, 45 anos, Nova Zelândia
A halterofilista fez história ao tornar-se a primeira mulher transgénero a competir nos Jogos Olímpicos, em 2021.
Valentina Petrillo, 49 anos, Itália
Competiu nos Jogos Paralímpicos. Recentemente, quebrou o recorde dos 200 metros na categoria masters.
Cece Telfer, 27 anos, EUA
Foi a primeira transgénero a vencer o campeonato universitário de atletismo norte-americano.
Andraya Yearwood, 21 anos, EUA
Foi criticada após vencer o campeonato norte-americano em pista coberta: "Uso a negatividade como combustível".
Terry Miller, 21 anos, EUA
Ficou em segundo lugar no campeonato de pista coberta e foi alvo de críticas, principalmente da extrema-direita.
Veronica Ivy, 40 anos, Canadá
Foi a primeira atleta transgénero a sagrar-se campeã mundial de ciclismo de pista Masters feminino.
Emily Bridges, 22 anos, País de Gales
Tentou correr nos Campeonatos Britânicos, na categoria feminina, mas os pedidos foram rejeitados pela UCI.
Austin Killips, 26 anos, EUA
A corredora de ciclocross foi a primeira transgénero a conquistar uma medalha no campeonato nacional.
Entrevista
A Federação Internacional de Atletismo impediu os atletas transgénero de competir em provas internacionais. Qual é a sua opinião?
Na minha opinião, essa decisão deve ter uma abordagem social e científica. Os atletas transgénero têm o direito a participar nas competições desportivas, mas existem questões científicas sobre as vantagens competitivas para as pessoas que eram homens e passam a ser mulheres. Sendo assim, é difícil haver igualdade no desporto. Há uma coisa chamada memória motora, alguém que foi homem beneficia de uma memória motora e tem uma vantagem competitiva quando passa a ser mulher. Encontrar uma definição equilibrada sobre esta matéria é difícil, até porque a ciência ainda não respondeu de uma forma categórica. Mas compreendo esta medida da Federação Internacional de Atletismo.
Acha possível ser criada uma categoria só para os atletas transgénero?
Acho difícil isso vir a acontecer. Não estou a ver. O paradigma do Desporto é os homens de um lado e as mulheres do outro. Mas há modalidades em que não há separação. No tiro, que faz a separação por sexos, por exemplo, não há motivo para haver separação e a vantagem competitiva não é especial. Mas as modalidades não estão preparadas para os transgénero criarem um escalão próprio que não respeite o sexo biológico.
Que tipo de recomendações fez o Comité Olímpico?
O Comité Olímpico Internacional fez recomendações, porque são as Federações Internacionais que têm a competência para organizar as competições. No caso da Caster Semenya [atleta intersexo] houve recomendações do Comité Olímpico, porque ela é mulher mas tem características hormonais que a caracterizam como homem. Nós já organizámos uma conferência e trouxemos uma atleta espanhola, a Maria José Martínez Patino, que viveu um drama similar. É mulher e tem uma vida reportada ao sexo biológico enquanto mulher. Mas não competiu porque tinha indicadores masculinos do ponto de vista hormonal.