João Manuel Pinto foi quatro vezes campeão nacional no F. C. Porto e depois fez duas boas épocas no Benfica, embora sem títulos. Na véspera de um clássico decisivo, em entrevista ao JN, puxou pela memória, com muito para contar.
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Como é ser agora um treinador longe dos holofotes?
Porque não começar por baixo? Estive no Moncarapachense, no Lusitano. Aprende-se, comete-se os erros que nos escalões profissionais não se podem cometer. Ganha-se hoje e perde-se amanhã.
Sente saudades de jogar num clássico como o de amanhã?
Claro. Quando se está num clube como o Benfica ou o F. C. Porto, estes são os melhores jogos. Não adianta os treinadores dizerem muita coisa, nem é preciso. Já se sabe que vai ser frenético. Seja qual for a altura da época, é sempre um jogo muito importante.
Jorge Costa disse um dia que, antes de defrontar o Benfica, só via à frente a cor vermelha...
Era mesmo assim. Lembro-me de irmos no autocarro para o jogo e parecia que íamos para uma guerra, com aquele ódio, no bom sentido, de querer ganhar por muitos. O Jorge, o Paulinho Santos, transformavam-se completamente. Quando eu estava no Belenenses, era bom jogar contra os grandes, para aparecer. Mas aquilo era outra coisa. Íamos com tudo lá para dentro. Logo quando acordávamos, havia sempre alguém a dizer: "Hoje até os comemos. Temos de os comer". Só víamos vermelho à frente.
Foi a melhor fase da carreira?
Sim. Tínhamos uma equipa fantástica. Quando entrávamos em campo, sabíamos que ganhávamos porque tínhamos os melhores jogadores, os melhores treinadores e um grande presidente, que percebe muito de bola. Quando se falava com Pinto da Costa, via-se que era um autêntico poliglota do futebol, uma pessoa inteligente na forma como lidava com as situações e como comunicava com os jogadores. O Benfica não estava numa boa fase, nem o Sporting, e nós sabíamos que íamos ganhar.
Como foi a transferência do Belenenses para as Antas?
O Belenenses tinha um treinador, o José Romão, que me disse que não contava comigo. Foi deselegante, mas eu fiquei no clube, pensei que podia haver uma mudança e houve mesmo. Entrou o João Alves e foi ele que me empurrou para a felicidade. No fim desse ano tão difícil, apareceu-me um empresário, o José Veiga, e os três grandes mostraram interesse. Eu era novo, o Benfica era o clube do coração, mas eu queria era ir para um grande.
Escolheu o F. C. Porto?
O Sporting tentou, falei com o presidente Sousa Cintra, que foi fantástico. Perguntou-me se queria ir, eu disse que sim, que o meu sogro era sportinguista. Disse-me que eu só tinha de dizer quanto queria ganhar e que me ia ligar. Com o Benfica, foi mais ou menos a mesma coisa. Depois, um dia recebi um telefonema de Veiga a dizer-me para pegar no carro e ir para o Porto. Não me disse qual era o clube. Pensei que podia ser o Boavista. Ou o Celta de Vigo. Ou o Corunha.
Foi sem saber qual era o clube?
Eu não conhecia nada da cidade e lá fui. Entrei num parque subterrâneo, depois num elevador e fomos dar a um escritório muito grande. Quem entrou a seguir era Pinto da Costa. Eu bloqueei completamente. Era a pessoa mais importante do país. Demorei cinco ou seis segundos a responder se queria jogar no Porto, porque estava bloqueado. Não esperava aquilo. Ele apresentou-me um contrato de quatro anos e era muito bom. Foi em cinco minutos, como disse um dia o "Cebola" Rodríguez, quando passou do Benfica para o F. C. Porto.
No F. C. Porto, foi treinado por nomes grandes. Bobby Robson, António Oliveira, Fernando Santos. Quem é que o marcou mais?
É difícil dizer qual foi o melhor. Robson era apaixonado pelo futebol. Ele não trabalhava defensivamente. Só eficácia. Queria era golos, espetáculo, ver as pessoas a vibrar. Era tudo simples. Oliveira era um rato destas andanças. Veio da seleção e tinha um grande conhecimento do clube. Fernando Santos estudava muito os adversários. Íamos preparados para o jogo. Foi realmente o engenheiro do penta. Dos três, talvez seja o que me marcou mais.
Tinha uma queda para jogar a avançado nos minutos finais?
Eu treinava a lateral direito, lateral esquerdo, central, trinco e nas peladinhas fazia muitos golos. Na primeira época, tínhamos Robson a treinador, mas também lá tínhamos o José Mourinho. O Domingos e o Mielcarski eram os pontas de lança e o Mourinho disse num treino: "Domingos, não te ponhas a pau não, que o João tira-te o lugar". Depois, houve um jogo em que a bola não entrava e o Robson mandou-me para a frente. Entrei e marquei. Quando não marcava, ajudava a marcar. Chamavam-me bombeiro.
Foi titular naquele célebre 5-0 na Luz. Foi o jogo perfeito?
O Benfica tinha uma boa equipa, mas nós fomos eficazes. Foi tudo ao pormenor. No terceiro golo, num canto, estavam sete jogadores na área e só um nosso, o Jorge Costa. E ele marcou golo. No fim, fui ter com o Valdo. Disse-lhe que tinha sido o meu ídolo e pedi-lhe a camisola. São memórias que ficam. Se calhar não haverá outro resultado assim. Talvez daqui a 100 anos.
O final do percurso no F. C. Porto já não foi tão agradável...
O que tenho de mais importante é a palavra. O único empresário que tive foi José Veiga e ele nunca falhou comigo. Um dia, Pinto da Costa chamou-me e disse que eu ou ia para um determinado clube que eles queriam ou para a equipa B. Só depois percebi o que se estava a passar. Havia uma guerra entre José Veiga e o presidente. E o sócio de Veiga era o filho do presidente. Veiga deixou de trabalhar com o F. C. Porto e quem era jogador dele estava afastado. O clube era o Sheffield Wednesday. Eu não queria ir para o estrangeiro. Disse a Pinto da Costa que não tinha culpa que ele se tivesse chateado com Veiga.
O que aconteceu a seguir?
Falei com José Veiga e ele disse para aguentar um ano na equipa B porque me punha num grande em Portugal. Em janeiro, assinei pelo Sporting, mas, passadas duas ou três semanas, houve eleições em Alvalade e ficou definido que não havia jogadores do Sporting a ir para o Porto e vice-versa. A dois dias do fim das férias, Veiga disse-me que ia para o Benfica.
Gostava de ter chegado à Luz noutro tempo?
Se fosse agora, era muito mais fácil. Quando cheguei, o clube estava destroçado. Para se ter uma ideia, as palavras do presidente Vilarinho foram: "João, já sei que és benfiquista, mas nós não podemos ser campeões. Não temos dinheiro para pagar prémios". Isto diz tudo sobre o estado em que estava o Benfica naquela época.
Mesmo assim, chegaram a chamar-lhe Beckenbauer da Luz...
Eu vinha da escola do F. C. Porto e queria fazer como me ensinaram Vítor Baía, Jorge Costa, Aloísio, João Pinto, Bandeirinha, Semedo... Tentei fazer alguma coisa diferente no Benfica, picar os meus colegas, mas muitos não aceitavam. Cheguei a chamar a atenção ao Zahovic. Eu conhecia-o e era um fora de série. Se no F. C. Porto lhe dissessem para correr, ele tinha de correr. Os sócios do Benfica gostavam da forma como eu liderava. A história do Beckenbauer vem daí. Dessa empatia. Fiz duas épocas excelentes no clube do meu coração.