A morte de dois corredores de montanha a escassos dias do Ultra Trail du Mont Blanc levou as autoridades alpinas francesas a acusar o mais famoso atleta de trail de dar maus exemplos, ao fotografar-se com equipamento ligeiro. Instalou-se a polémica
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15 de agosto. Um engenheiro de Lyon despede-se da mulher e dos filhos e sai para uma ascensão ao cume do Monte Branco, coisa que, para quem pode, encaixa num dia de sol. Para os "ultraterrestres" como o catalão Kilian Jornet ou, na perspetiva nacional, Carlos Sá ou Armando Teixeira, cabe em horas, uma mão cheia delas e pouco mais. O engenheiro francês foi encontrado dois dias depois, caído numa fenda, com equipamento de trail simples, licra e uma camada levemente impermeável, sem grampos nas sapatilhas, nem picareta para amparar quedas no gelo. Tinha 46 anos.
24 de agosto. Matthieu Craff, jovem promessa do trail francês, sai de madrugada para um treino noturno até ao mesmo cume, em preparação para o Grande Raide da Réunion, a Diagonal dos Loucos do Oceano Índico na qual é dado como favorito. Roupa de trail leve, calçado normal. Por volta das seis da manhã, na brutal descida da mais alta montanha europeia, escorrega numa aresta das Bosses, zona classificada como "muito perigosa". Tinha 28 anos.
É inconsciência pura. Ultrapassa o entendimento. Estamos no domínio do irracional
As duas mortes antecederam a prova rainha do trail, a Meca dos corredores de montanha, aquela a que todos almejam - e acreditam - poder ir. E fizeram soar os alarmes das autoridades locais, que impuseram regras: desde o dia 24 de agosto, só se sobe ao cume mediante o cumprimento de uma extensa lista de equipamento, sob pena de multa (Boné, óculos de sol, máscara de ski, protetor solar, casaco quente, gore tex, calça de montanha, sobrecalça, sapatos de alpinismo podendo adaptar grampos, grampos regulados, cinturão de alpinismo, kit de saída de uma fenda, corda, GPS ou bússola e altímetro).
Do seu lado, o comandante do Pelotão de Gendarmerie de Alta Montanha fala em "inconsciência pura". O que os dois malogrados atletas fizeram, diz Stéphane Bozon ao jornal "Lyon Capitale", "ultrapassa o entendimento, é uma asneira sem classificação. Estamos no domínio do irracional". "Recusando agir perante a inconsciência de alguns, todos aqueles que o fazem (subir sozinho, em traje de trail, à herói) conscientemente carregam uma pesada responsabilidade cúmplice", reagiu o autarca local, Jean-Marc Peillex, apontando o dedo às "cabeças quentes" que confundem a subida ao Monte Branco com ultratrail. Bozon completa com a estocada final: "é o fenómeno mediático em torno do trail".
Destinatários da mensagem: os "ultraterrestres" que somam recordes e relatos filmados de proezas indizíveis cumpridos com o traje mais leve possível. Estava denunciado o "efeito Kilian" e anunciada a polémica. O visado reagiu, primeiro, publicando uma imagem dele nu no cume e perguntando pela legalidade da roupa ultraleve se a ascensão for pelo lado italiano, corrigindo depois, à margem do UTMB, para a necessidade de preparação. "As pessoas só retêm a imagem do cume. Atrás disso há todo um trabalho e uma experiência de alpinista". Mensagem a reter: preparação.
Já vi gente hiper equipada mas sem condições para subir sequer a Serra Amarela
Ao "Le Monde", a diretora da associação de prevenção e socorro Chamoniarde, Océane Vibert, alinha com Jornet. Sim, admite a moda do trail, a consequente busca de limites cada vez mais alto e o "hiperconsumo" do Monte Branco, mas todo este aqui-d"el-rei que vêm aí trailers é um exagero. O clima precipitou degelos e fez subir os riscos, matando este verão 12 alpinistas, o dobro do ano passado: alguns tinham saído sozinhos, outros com "todo o equipamento de alpinismo mas sem a cabeça", outros ainda ignoraram os avisos de tempestade, outros, por fim, cegos pelo mito do cume.
O ultramaratonista português Carlos Sá, colecionador de provas em cenários extremos, tempera a questão. "Já subi várias vezes ao cume do Monte Branco em modo leve, com sapatilhas de trail, até em treinos a começar à meia-noite a ligar Chamonix ao cume em seis horas. Isto só é possível com uma boa preparação física e equipamentos ligeiros. Mas implica conhecimentos de alta montanha". Nunca sai quando a meteorologia o desaconselha e na mochila, garante, leva sempre os grampos e a picareta para travar quedas e ajudar a subir em partes técnicas. Mas critica a reação do autarca francês. "É de alguém que não conhece a realidade e vai ao encontro dos interesses dos guias locais, que têm o monopólio das ascensões e cobram mais de 1000 euro por pessoa", diz o atleta, organizador de várias provas de ultratrail em Portugal.
"Já vi muita coisa grave com gente hiper equipada mas sem condições para subir sequer a Serra Amarela, no Gerês, quanto mais o Monte Branco". De que adianta o equipamento se uma queda é fatal ou se falta preparação, como acontece com muitos alpinistas ou até guias, pergunta Sá, cuja carreira começou no alpinismo. "Quem ama o que faz nunca veste a capa de herói", conclui Sá, para quem "viver intensamente a montanha é respeitá-la". Recusa, portanto, o "efeito Kilian". Mensagem a reter: "preparação".
O "efeito Kilian" não existe só no Monte Branco, existe em Portugal
Já Armando Teixeira, também ultramaratonista e mentor de provas na serra mais alta de Portugal continental, acredita no "efeito Kilian". "Não existe só no Monte Branco, existe em Portugal", onde a massificação do trail fez crescer a exposição aos riscos, mas onde "a maioria dos atletas não sabe conceitos básicos de montanha". Com várias provas de alta montanha no currículo, enumera regras básicas: "levar o material obrigatório, companhia e telemóvel e deixar indicações precisas de onde se vai por onde e por quanto tempo".
"Portugal não tem alta montanha, mas a exposição ao risco é igual em média ou baixa montanha. Na Montanha podemos ter no mesmo dia as 4 estações do ano. E a proximidade com o Atlântico torna as nossas serras atípicas", acredita Teixeira, que insiste na tecla da preparação. "Devemos ter consciência da nossa condição física e das nossas necessidades", que são diferentes para quem não está bem preparado. E sim, afirma, "há cada vez mais atletas a tentar imitar estrelas do trail, mas convém não esquecer que alguns deles, antes de serem corredores, são enormes alpinistas". Mensagem a reter: preparação...