Arbitragem é setor escaldante e muitos jovens desistem no primeiro ano de atividade. Exceções remam contra a maré
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Se há atividade onde o melhor é passar despercebido é, indiscutivelmente, a arbitragem. O setor continua em ebulição e o escrutínio é constante. Quando o erro surge em jogos mais mediáticos, ai Jesus, a coisa fica ainda mais apertada. Além dos insultos, surgem as pressões e, inclusive, ameaças de morte, agora tão em voga nas redes sociais. Luís Godinho, após o Braga-F. C. Porto, da meia final da Taça de Portugal, é o exemplo mais recente. Como é que jovens em início de carreira, que ganham 15 euros por jogo mais despesas de transporte, olham para o assunto e projetam o futuro?
O JN ouviu a história de Diogo Santos, João Manso e Tânia Lopes, árbitros em construção que, por força da pandemia, têm aproveitado os últimos tempos para refletir e rever as leis de jogo. Até ter 18 anos, este trio só pode dirigir jogos em escalões inferiores à idade deles. Já como assistentes podem participar em qualquer jogo dos distritais. Os números mostram que 40% dos jovens entre os 16 e 18 anos desiste logo no primeiro ano de atividade, mas Diogo, João e Tânia inserem-se nos 60% que estão decididos a mostrar o cartão vermelho às ameaças no futebol. "É preciso ter força mental e mudar a cultura desportiva", dizem, em uníssono.
Diogo Santos: Mão firme na luta aos sacos de pancada
Em outubro de 2020, Diogo Santos participou no primeiro jogo, um Trofense-Amarante, do escalão sub-21. Foi o primeiro e o último, pois a pandemia, já se sabe, atrapalhou todos os planos no futebol de formação. "Fui quarto árbitro e correu bem. Jogadores e treinadores deram-me os parabéns", conta ao JN. O jovem estudante, de 15 anos, despertou para a arbitragem há apenas um ano, mas tem as metas bem definidas: "Chegar o mais longe possível, aprender e evoluir. Neste período, tenho aproveitado para rever as leis de jogo e ver jogos na televisão. Procuro exercitar o corpo com corridas, sprints e abdominais. É a única forma de continuar ativo".
O jovem árbitro portuense herdou o gosto de apitar no berço: "A arbitragem está na família, mas o meu avô [Martins dos Santos] e o meu pai [Daniel dos Santos] nunca me forçaram a nada, disseram sempre para fazer o que gostasse. Não pensava em ser árbitro, mas depois abriu o curso e decidi experimentar".
O rosto condiz com a tenra idade, mas a voz grossa até pode servir de argumento para impor a lei, num momento conturbado para o setor. "Muitos jovens desistem porque não estão preparados para ouvir insultos. E, de facto, não deveria ser assim, mas quem segue esta carreira sabe que está exposto e tem de ser forte mentalmente. É a única forma de não abanar e lidar com a situação. Temos de ter a capacidade de focar no que realmente importa", salienta Diogo, que lamenta as ameaças que os árbitros têm sofrido: "Claro que assusta saber que podemos chegar a casa e ser abordados por alguns indivíduos ou que as moradas circulem nas redes sociais. Espero que essas situações sejam erradicadas, porque os árbitros não podem ser saco de pancada. Todos erram, os jogadores e treinadores também".
"O caminho é longo, mas não vou desistir e espero um dia ser árbitro FIFA", revela, confiante. A.M.
João Manso: Viver a realidade fora da Playstation
O apelido não engana. João é filho de Nuno Manso, árbitro assistente da Liga, e por isso desde muito novo o jovem bracarense percebeu que o setor da arbitragem era tudo menos consensual. "O árbitro é um alvo fácil, mas sinto que, nos últimos tempos, estão a ser ultrapassados alguns limites. Tudo isto é resultado da cultura desportiva que impera, sobretudo no futebol. Uma coisa é haver crítica em termos do desempenho, outra coisa é entrar no âmbito pessoal. Há ameaças e isso assusta um pouco, mas quem leva a arbitragem a sério não se pode intimidar", diz, convicto, João Manso, que, à semelhança de outros jovens árbitros tem estado confinado e fora da competição. "Dedico-me aos estudos. De vez em quando saio de casa e procuro manter a forma. Continuo motivado porque quero estar preparado quando for possível regressar aos relvados e fazer o que mais gosto", observa.
O último encontro onde sentiu a adrenalina do jogo foi num Ruivanense-Esporões, da Divisão de Honra, da A. F. Braga, onde foi árbitro assistente. "Quem entra por hobby na arbitragem, dificilmente, aguenta a pressão. Agora, ainda é cedo para tirar conclusões sobre o meu futuro, mas posso garantir que me vou esforçar para que a minha carreira seja bem sucedida", assegura João Manso.
O início da carreira surgiu por influência do pai, que o alertou para a abertura de um curso. "Quando era mais novo não pensava muito nisso, mas depois pensei "porquê não?" Foi uma forma de me libertar do meu mundo, onde só via Playstation e brincadeira. Inscrevi-me e ainda consegui cativar a minha irmã, de 20 anos, e o meu primo", conta João, que tem a principal referência de dentro de casa: "Para mim, o meu pai é o melhor árbitro assistente da primeira Liga. Ele ajuda-me muito e consegue arranjar tempo para ver os meus jogos e dizer-me onde tenho de melhorar". A.M.
Tânia Lopes: Pedagogia como meio para a evolução
O ambiente criado em torno da arbitragem "intimida um bocado", mas Tânia Lopes nunca foi de se ficar pelas coisas negativas. Aos 17 anos, decidiu seguir o exemplo do irmão e inscreveu-se num curso de arbitragem, promovido pela A. F. Aveiro, com a ideia de "ter uma opinião bem fundamentada sobre o assunto". Fala quem sabe: "Era importante que todas as pessoas tivessem conhecimento sobre arbitragem" antes de entrarem em discussões, muitas vezes enviesadas "por ser o seu clube em causa e por não perceberem o fundamento de como se arbitra um jogo".
Por isso, apostou na pedagogia para atacar um fenómeno há muito enraizado no meio desportivo, com o objetivo de levar "as pessoas a terem mais respeito não só pelos árbitros, mas também por jogadores e treinadores".
Tânia olha para a arbitragem como um método de desenvolvimento pessoal. Quando apitar um jogo pela primeira vez, sabe que poderá errar e que será escrutinada pelas decisões que vier a tomar. "Mas se não conseguirmos enfrentar esses comentários estaremos mal preparados para a vida", apressa-se a acrescentar, com o positivismo que a carateriza. Enquanto espera pelo exame de avaliação à parte teórica, adiado devido à pandemia, a jovem continua a estudar as leis de jogo e mantém a forma física com algumas corridas e exercícios em casa.
Com a quarentena, passou a ver mais jogos de futebol. Foca-se nas decisões dos árbitros e dá por si "a pensar no que faria em cada situação". Por vezes, vêm-lhe à mente as discussões no curso, que a faziam ver que, "em alguns casos, se o árbitro atuasse da forma correta iria contra a opinião geral do público". Das aulas também guarda um conselho. O de quando tomar uma decisão errada "encarar a situação e aprender com isso, para não repetir". Para o futuro, gostava de estudar medicina e de chegar longe na arbitragem. Rui Almeida Santos