Fomos ao Porto Santo porque nos disseram que a ilha-praia tinha trail. Confirma-se. E do bom. Pena que quem manda nela - na ilha - não perceba o que isso quer dizer.
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Quando a nau dos escudeiros de D. Henrique, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz aportou em Porto Santo, nome lógico para quem voltava de duras batalhas contra os mouros na costa africana, onde tinham vivido o "descerco" de Ceuta, deram com uma ilha calma habituada a "acolher" os barcos que navegavam ao largo do Atlântico rumo às castelhanas Canárias.
A "descoberta" - as aspas dão sentido ao acaso da chegada à ilha, inteiramente culpa do mau tempo - foi seguida da "aventura" exploratória do enorme negrume que avistavam ao largo: afinal, a massa escura no horizonte era a ilha mais rica, a da abundância de água, madeira e terra fértil.
Uma benesse para a arrogante sede de conhecimento de D. Henrique, que fez de nós o povo pioneiro navegador de que tanto nos orgulhamos. Temos portanto na Madeira, no Porto Santo em particular, um marco histórico que nos moldou como povo, nação e gentes. Descobrir para povoar. Para trabalhar a terra e dar a Portugal riqueza e sustento.
As voltas da história acabariam por entregar as capitanias da Madeira aos descobridores e a de Porto Santo a Bartolomeu Perestrelo, filho de nobres italianos e oficial das campanhas de D. Henrique em Ceuta. Ganhou uma ilha assolada por piratas e pobre em agricultura. Diz a lenda que, no primeiro desembarque, soltou uma coelha prenha e que esta e seus descendentes, na ausência de predadores, foram responsáveis pela destruição de toda a vegetação que nela abundava.
Vem tudo isto a propósito do Porto Santo Nature Trail e de correr por onde os coelhos andaram. E confirmar a história. O Porto da ilha é realmente "santo". O comprido areal - 9 km -, dá-lhe um ar de paraíso e abraça águas calmas e tépidas. A vegetação rareia na base das montanhas mas abunda nos topos, porque Chiapa de Azevedo tentou, no início do século XX, fixar vegetação repondo o que a coelha comeu. E tem, por isso, no alto da longa escadaria do "Pico Castelo" (uma das mais bonitas subidas da prova), uma estátua que olha o horizonte por entre o verde que lá deixou.
Confirma-se ainda a pouca extensão de território - 42 escassos km quadrados. Não se confirma que seja uma ilha plana. Não é. Do alto do Pico Facho, ponto mais alto ligeiramente acima dos 500 metros, avistam-se vários picos entre os 200 e os 400 metros que a organização fez questão de nos apresentar até nos meter nas pernas 1900 metros de desnível positivo acumulado. O último deles, a 4 km da meta, já nós corríamos junto ao estreito cordão de fina areia amarela, pôs-nos num miradouro para o mais belo dos postais e de onde se avistariam, no século XV, os piratas e mouros que ali buscavam refúgio do mar.
Dos 43 km de vistas excecionais, entre areia e montanha, chuva matinal e sol quente de inverno, sobra a certeza de um trail surpreendente até para os madeirenses habituados a ver no Porto Santo a praia que falta à ilha grande. Desconfortável corrida como se quer no trail, com traços de uma pequena "Madeira" nas suas escadarias e alguns picos escarpados, clima atlântico e ameno, tem o essencial para uma fugidinha desportiva em tempo de tempestades pelo continente.
Rasgada a meio pela pista que traz as naus voadoras quando (também elas) procuram refúgio do mau tempo, Porto Santo é agora, pela mão da boa organização da Associação de Atletismo da Madeira (AARAM), um pequeno território onde o trail conquistou espaço e onde os atletas podem usufruir ao máximo do cada vez mais em voga conceito de maraturismo, aproveitando a época baixa turística para nos proporcionar sol, montanha e descanso a preços acessíveis.
O relato visual da corrida está no Facebook da AARAM. Poderíamos sugerir a consulta de páginas das autoridades do Porto Santo, mas as pessoas que as representam, quais navegadores em busca de territórios de outra dimensão, zarparam no fim de semana para a ilha grande, deixando as honras aos simpáticos comerciantes que ainda animam a pequena. Talvez na próxima visita de mais de 600 atletas e famílias se dignem ficar para dizer olá.
Sobram as memórias e o desejo de voltar em 2018, ano de comemoração dos 600 anos de história e estórias de baías e piratas. Se Bartolomeu fosse vivo agradecia agora a sorte que lhe calhou. Temos a certeza.