As imagens de um corredor londrino a empurrar para a estrada uma mulher que lhe atrapalhava a corrida tornou-se viral. Vamos lá lançar o caos da discussão quanto ao espaço público.
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Se eu corro e vou na minha linha tão reta quando possível e tu manténs-te na tua quanto possível o mundo é lindo e somos todos felizes... Stop. Rewind. Play. Se eu corro e vou na minha linha tão reta quanto possível e tu manténs-te na tua quanto possível, mas um de nós é uma besta como tantos, o mundo é uma caca e um de nós pode morrer já ali se não for o caso, incrível, de o motorista do autocarro que vem, na bolina da via livre, ter mais juízo do que aquele de nós que é uma besta e desviar as rodas in extremis e poupar a vida daquele de nós que ia ali, a manter a linha tão reta quanto possível.
Confuso?
Neste mundo das câmaras de vigilância e da internet e das redes e toda essa parafernália de coisas que nos fazem perceber que o grande irmão é uma realidade incontornável e que nada, mas nada mesmo, do que possamos fazer passará incólume, ser uma besta já não compensa.
A besta da história, já perceberam, porque todos leram ou viram (outra chatice da internet, já toda a gente leu ou viu tudo), é o moço que corre. O tipo. A coisa. Todos corremos. Todos nos aborrecemos porque alguém nos atrapalhou o ritmo, ou pace, ou lá como se diz dessas modernizes da corrida, desculpem, do running. E não digam que não. Daí a mandar o alegado infrator às urtigas vai um passo. Ténue. Tão ténue. Pois, com o moço em causa foi demasiado ténue.
Era maio. Ele vinha na vida dele, num ritmo, digamos, muito menos do que razoável (embrulha!), e teve que desviar dez cm de um transeunte que caminhava, mantendo a linha reta tanto quanto possível, no largo passeio misto (com pista) de uma ponte do sul de Londres. E a seguir teve que desviar dez cm, dez, de uma senhora. Mandou-a às urtigas, um belíssimo corredor bus com um imenso autocarro londrino a aproximar-se. Por nada, porque lhe deu, que a mulher seguia praticamente atrás do primeiro transeunte.
Ela cai, o motorista desvia, tudo fica bem quando acaba bem e ela é socorrida pelos passageiros do veículo que travou à bruta. Passam uns 15 minutos. O tempo de ele voltar num percurso ainda por cima idiota, vai e volta e está feito. Ela vê-o e tenta falar com ele e ele, gigante, ignora-a e segue o pace, ou ritmo, ou lá que porcaria se diz. E tudo estaria bem se... o mundo não fosse das câmaras de vigilância e das redes e dos jornais e tal. A polícia faz um apelo a testemunhas, os jornais divulgam, passaram três meses mas não a memória e toma, um suspeito foi detido para interrogações. Não é moço. Tem 50 anos, idade para ter juízo e estatuto: é banqueiro. Nega, mas só foi em liberdade sob fiança.
Moral da história: a verve nunca nos falha quando toca a dizer mal da nossa vida. Se somos transeunte temos os corredores que nos atropelam, se somos corredores temos os gajos que passeiam de braço dado, aos quatro de cada vez, a ocupar todo o passeio, ou os ciclistas que nos manda borda fora, se somos ciclistas temos os corredores na ciclovia e os anormais dos condutores a abrir portas, virar à direita à nossa frente, travar, apertar, abalroar, se somos automobilistas temos os ciclistas a par, lentos, que seca, o mundo contra nós, sempre.
É? Se aquele dizer foleirote da educação primária nos parece uma remanescência do egoísmo desta sociedade individualista que subvertemos a jeito - a TUA liberdade acaba ande começa a MINHA - que tal pô-lo às direitas? Somos todos livres se soubermos que os outros também são. O espaço público é de todos. Ponto. E o extraordinário de tudo isto é que cabemos lá todos. Incrível.