O sucesso da corrida de montanha é produto de uma sociedade que endeusa a performance. A opinião de um sociólogo e de uma antropóloga, na ressaca do Monte Branco.
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Voltemos à corrida de montanha. Para não viajarmos até gigantescos eventos de trail fora de portas, atentemos nos sucessos cá dentro. Abutres, Madeira Island Ultra Trail, Peneda-Gerês Trail Adventure, Serra d"Arga, Ultra Trail das Aldeias de Xisto, Ultra Trail de S. Mamede, todos - e outros - partilham de uma característica surpreendente: esgotam vagas mal abrem as inscrições. E cada vez mais são preenchidas por gente comum, que, como nós e vocês, trabalham, têm famílias a que se dedicar e entregam o tempo que sobra ao treino.
Porquê? Por uma série de razões que vão da moda à economia (das marcas, entenda-se, ou não fosse a corrida a atividade gratuita mais cara de todos), passando pela "ecologização" do desporto e, sobretudo, por uma sociedade cada vez mais competitiva, que hipervaloriza "a reatividade, a autonomia, a adaptabilidade" e a capacidade de "otimizar recursos para a melhor performance", respondem a antropóloga Florence Soulé-Bourneton e o sociólogo Sébastien Stumpp, num artigo publicado no jornal francês "Le Monde".
O texto foi escrito a seguir ao Ultra Trail du Mont Blanc, a "Meca" ou o "Santo Graal" do trail mundial no qual só se consegue participar por acumulação de pontos noutras provas e ao cabo de várias tentativas. "O impulso do ultra trail tem que ser ligado à progressiva imposição, na nossa sociedade, da noção de competência, que coloca sistematicamente em xeque o domínio de um alto nível de performance (o saber fazer) e a encenação de um conjunto de atitudes "autênticas" (o saber estar)".
O corredor de montanha, defendem os autores, é o "avatar da sociedade da performance", que, com a última tecnologia no punho, no corpo e na mochila, tudo ligado a softwares online, constrói um sucesso na solidão, moldando a progressão à dureza do terreno e à resposta física, para terminar com a sensação de heroicidade. Uma heroicidade que, já aconteceu, conduz a acidentes. O trailer "distancia-se", assim, dos atletas que seguem programas de treino e ordens de um treinador, à roda de uma pista, evidenciando "a dimensão sábia e autogerida da sua prática, característica de uma sociedade do conhecimento de que é produto".
Entra a seguir a ideia de "ecologização", que se estende do meio em que o trailer evolui (a natureza) à atividade (até no que toca à alimentação), intocados. "Consciente ou inconscientemente", idealiza "um ilhéu de pureza", de introspeção e procura de si próprio, longe da realidade e da sociedade das regras e do consumo. Mas não dos semelhantes, ainda que de forma revolucionária: "É toda uma nova forma de estar junto, mais efémera, menos constrangedora do que o modelo associativo tradicional e sobretudo virada para as aspirações pessoais", escrevem Soulé-Bourneton e Stumpp.
Ou seja, é a competição individual feroz numa aparência de comunidade unida num propalado ideal de pureza, misturando valores inconciliáveis: "hierarquia desportiva e horizontalidade das relações, hiperconectividade e isolamento do mundo, regimes alimentares à base de produtos biológicos e consumo de gel e pós químicos". Os autores do artigo terminam com uma questão que merece outra longa reflexão - fora de "um verdadeiro tempo social", perdeu-se o conceito de desporto como elemento integrador?