Apagão ibérico lembrou-nos que o dinheiro físico ainda é útil e que devemos ter uma reserva
Estudo do Banco Central Europeu (BCE) mostra que o digital não resolve tudo em momentos de crise. Há países que chegam a aconselhar as famílias a guardar até 100 euros, em notas e moedas, por cada um dos elementos do agregado.
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O apagão que atingiu a Península Ibérica em abril de 2025 revelou uma realidade incómoda: numa sociedade cada vez mais digitalizada, o dinheiro físico continua a ser o último recurso quando tudo falha. Durante 22 horas, mais de 50 milhões de pessoas ficaram sem eletricidade, transformando as notas de euro no único meio de pagamento funcional.
Quando a rede elétrica ibérica perdeu sincronismo com o sistema europeu principal, os terminais de pagamento, caixas multibanco e carteiras móveis ficaram inoperacionais. O comércio eletrónico nacional registou uma quebra 54%, enquanto o gasto com cartões nas zonas afetadas caiu 42% comparativamente às regiões não afetadas. As perdas diretas do PIB foram estimadas entre 400 milhões e 1600 milhões de euros.
Aquele episódio ilustra um fenómeno mais amplo documentado pelo BCE: durante grandes crises, a procura por numerário dispara, contrariando a tendência de digitalização dos pagamentos. Dados recentes mostram que o valor das notas de euro em circulação mantém-se consistentemente acima de 10% do PIB da Zona Euro.
O paradoxo das notas
A pandemia de covid-19 exemplificou este "paradoxo das notas" de forma dramática. Apesar da redução documentada do uso de numerário nas transações quotidianas - devido a receios de contágio e aceleração dos pagamentos contactless - a emissão líquida acumulada de notas na área do euro aumentou mais de 140 mil milhões de euros até ao final de 2020. Isto representou um acréscimo superior a 130% face à média anual pré-pandemia.
A invasão russa da Ucrânia em 2022 gerou outro pico significativo, particularmente nos países fronteiriços. Na Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia e Finlândia, a procura atingiu níveis de seis a dez desvios-padrão acima da norma. Mesmo países como Alemanha e Áustria registaram desvios de até cinco desvios-padrão, demonstrando como a proximidade geográfica ao conflito influencia a acumulação de liquidez portátil.
Lições da crise grega
A crise da dívida soberana grega oferece outro exemplo revelador. Em junho de 2015, a emissão líquida mensal pelo Banco da Grécia atingiu quase 5 mil milhões de euros. Após a declaração do feriado bancário e imposição de controlos de capitais, incluindo limites diários de levantamentos, a procura por numerário correlacionou-se diretamente com o índice de stress soberano, que atingiu 0,82 numa escala de 0 a 1.
Estes episódios revelam que o numerário desempenha funções distintas durante crises: serve como meio de pagamento resiliente quando os sistemas digitais falham, e como reserva de valor tangível em períodos de incerteza extrema. A análise econométrica confirma que fatores como menor acesso ao numerário e medo de contágio reduzem o uso transacional, mas aumentam estatisticamente a propensão para deter reservas domésticas.
Montantes mínimos recomendados
As evidências reforçam várias implicações cruciais. Primeiro, o numerário funciona como infraestrutura crítica de "back-up" (reserva) universal para sistemas de pagamento digitais. Segundo, durante crises prolongadas, serve como reserva tangível menos sensível às taxas de juro que outras formas de liquidez. Terceiro, o acesso fiável a numerário é pilar da confiança pública na moeda única.
Várias autoridades europeias e nacionais já emitiram recomendações para que os cidadãos mantenham reservas de numerário para contingências súbitas. Em Espanha, 39% da população já guarda dinheiro físico em casa como precaução, segundo dados do BCE. Por exemplo, as autoridades nos Países Baixos, na Áustria e na Finlândia recomendam manter montantes que variam entre aproximadamente 70 euros e 100 euros por membro do agregado familiar, ou o suficiente para cobrir as necessidades essenciais durante cerca de 72 horas.
O apagão ibérico demonstrou que, mesmo em sociedades altamente digitalizadas, o dinheiro físico permanece insubstituível quando as infraestruturas críticas falham. Enquanto a inovação digital avança, o papel do numerário como "infraestrutura de resiliência" mantém-se essencial para a estabilidade económica e a confiança pública no sistema monetário europeu.