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Em tempo de eleições autárquicas, o exercício do mirífico até pode fazer a nossa autoestima coletiva levantar voo, mas deixa a cidade em modo "drag queen". E se desprevenidos, os cidadãos deixam-se levar pelo barulho das luzes e pela maquiagem dos feéricos cartazes encavalitados em qualquer praça do burgo.
É o que está a acontecer em Vila Nova de Famalicão, por estes dias.
Só assim se entende que o 90.º aniversário natalício de um cidadão que iluminou o caminho a tantos de nós - o advogado famalicense António José Salvador Coutinho - tenha sido praticamente ignorado - pelo menos, até ao momento em que escrevo.
Trata-se de uma pessoa rara, com qualidades humanas e um percurso cívico e profissional exemplares, sendo credor do reconhecimento e dos parabéns de muito boa gente. Mesmo dos mais desatentos. Sim, é hoje! Apressem-se. Uma mensagem ou um telefonema são fácil expediente para remediar uma falha que, bem vistas as coisas, é de toda a comunidade famalicense.
É que António José Salvador Coutinho, apesar de ter nascido em Espinho, reside em Vila Nova de Famalicão há 81 anos, onde continua a ser advogado. Foi trabalhador, no chão da fábrica, da Mabor, em Lousado, durante 14 anos. Ao mesmo tempo estudava, como aluno voluntário, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pela qual se licenciou em 29 de julho de 1968.
Como trabalhador, contribuiu para a literacia sindical de muitos companheiros da Mabor e a consciencialização dos direitos dos trabalhadores do vale do Ave durante o regime do Estado Novo, o que lhe valeu ser interrogado pela PIDE.
Ainda antes do 25 de Abril, colaborou com o MDP/CDE, formação partidária de que foi dirigente local e distrital e pela qual foi candidato à Assembleia Constituinte, em 1975. Nesse ano, e pelos seus ideais democráticos, viu o seu escritório de advogado, no centro da então vila de Famalicão, completamente destruído. Recomeçou do zero, instalando-se na Delegação local da Ordem dos Advogados.
Contrário às posições do MDP/CDE no período do "Verão Quente", deixou o partido nessa altura e acabou por aderir ao PS em 1977, tendo chegado a pertencer à respetiva comissão diretiva a convite de Mário Soares (equivalente à atual comissão política).
Como advogado, assumiu a defesa de vários sindicatos e patrocinou a defesa dos trabalhadores da Mabor durante a histórica greve de agosto de 1974: 4500 escudos de salário mínimo e 40 horas em cinco dias de trabalho eram duas das principais reivindicações, que tiveram vencimento.
O desporto, quer como praticante quer como dirigente, e, sobretudo, a produção literária são outras das facetas da preenchida vida de Salvador Coutinho. Chega aos 90 anos, com 16 livros publicados, 11 dos quais de poesia. Os restantes repartem-se por três romances e dois contos.
Em 2012, publicou "Prenda mais, morro por ti", que dedicou ao seu amigo Miguel Cadilhe. É desse livro que, em jeito de explicação mal-amanhada, respigo, para tentar a salvar a face coletiva dos famalicenses:
"esquisito dia vai de vela
ninguém te ouve nesta manhã dita
tudo é dito"...
Que a cenarização da cidade-íman de votos, que dá escala e hipervaloriza o "nós" em detrimento do "eu" que vota, saiba também exaltar a vida de um Homem que tem acrescentado cidadania, empatia, mundividência e modernidade cultural.
Parabéns e vida longa, caro amigo Salvador Coutinho.