Fim do estatuto especial da China põe termo a dilema da "superpotência híbrida"
Quem aterra no aeroporto de Pudong (Xangai) e apanha o comboio de levitação magnética que em oito minutos percorre 30 quilómetros até ao centro da capital económica da China, dificilmente acreditaria estar num país em desenvolvimento.
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Nos centros de Pequim, Shenzhen ou Cantão, artérias de oito ou mais faixas, que atravessam densas malhas de arranha-céus, enchem-se de automóveis com matrícula verde - a marca que distingue os elétricos dos carros de combustão interna -, ilustrando o domínio da China em importantes indústrias do futuro.
Nos centros comerciais, as principais marcas de luxo internacionais competem pela atenção da maior classe média do mundo.
Contratado pelo Beijing Guoan, a principal equipa da capital chinesa, o futebolista luso-angolano Fábio Abreu confessa-se ainda impressionado com o "muito desenvolvido e organizado" país de acolhimento.
"Na primeira mensagem que escrevi à minha mulher, após chegar a Pequim, disse-lhe que tudo o que há na Europa se encontra aqui e, por vezes, ainda mais e melhor", explicou à agência Lusa.
Até agora beneficiante do estatuto de país em desenvolvimento, a China tinha a mesma classificação que, por exemplo, a Albânia, Somália ou Timor-Leste: era a "única superpotência híbrida", onde coexistiam características de países ricos e pobres, escreveu a revista Foreign Policy.
Essa ambivalência era motivo de tensão no plano internacional. Após anos de pressão por parte dos Estados Unidos e de outros países desenvolvidos, Pequim anunciou agora que deixará de reivindicar o tratamento especial reservado às economias em desenvolvimento no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).
A decisão, tornada pública pelo primeiro-ministro chinês, Li Qiang, durante um fórum de desenvolvimento promovido pela China à margem da Assembleia Geral da ONU, visa, segundo o Governo chinês, "reforçar o sistema multilateral de comércio", numa altura em que este "enfrenta desafios severos".
Em Genebra, a embaixadora da China junto da OMC, Li Yihong, fez questão de sublinhar que se trata de uma escolha voluntária. "É uma decisão própria da China", disse aos jornalistas.
A diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, descreveu o anúncio como "uma notícia importante e chave para a reforma da OMC", elogiando a liderança chinesa.
O estatuto de país em desenvolvimento garantiu, até hoje, à China acesso a empréstimos com taxas preferenciais de instituições como o Banco Mundial, menores obrigações em matéria de ambiente e tarifas aduaneiras reduzidas para exportações destinadas a mercados ricos.
A medida aplica-se apenas a negociações futuras e não altera os compromissos já assumidos no quadro de acordos anteriores.
De um país pobre e isolado, a China converteu-se, em 40 anos, na segunda maior economia mundial, projetando hoje a sua influência no exterior, através de iniciativas como o gigantesco projeto de infraestruturas 'Faixa e Rota', a internacionalização da moeda ou a mediação de conflitos além-fronteiras.
No ano passado, o país, que opera já a maior marinha do mundo, apresentou o seu terceiro porta-aviões. O objetivo é ser a potência dominante na Ásia-Pacífico, retirando primazia aos Estados Unidos.
Mas a China continua a exibir traços de um país em desenvolvimento: sofre de poluição generalizada e, no Índice de Desenvolvimento Humano - que se concentra na qualidade da saúde e educação -, surge em 79º lugar, abaixo do Sri Lanka e do Irão.
Com cerca de 1.400 milhões de habitantes, a China é o segundo país mais populoso do mundo, ultrapassado apenas pela Índia. Apesar de ter ascendido a segunda maior economia mundial, o PIB 'per capita' da China é, assim, metade do de Portugal. Enquanto 2% da população portuguesa vive abaixo do limiar da pobreza de 6,20 euros por dia - esta categoria abrange 25% dos chineses.
A mudança agora anunciada procura também projetar uma imagem de liderança responsável num momento em que a OMC é vista por muitos como uma organização em crise, paralisada por disputas entre grandes potências e pela proliferação de medidas unilaterais, segundo os analistas.