Gastos com alimentação deverão subir 22%. A perda do poder de compra pode ser permanente, avisa especialista.
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Uma família composta por dois adultos e um dependente terá de gastar anualmente, em 2023, mais 2705 euros para comprar exatamente os mesmos produtos e serviços que entravam no seu orçamento em 2014. A inflação média de 2022 ficou em 7,8%, devendo descer para 4% em 2023. Se assim for, teremos um valor acumulado de quase 18% ao longo da década.
Uma vez que os salários não acompanham a espiral inflacionista e que muitos preços de bens e serviços não recuam para níveis anteriores, a crise atual pode atingir de forma insanável os rendimentos. "A perda do poder de compra é permanente, dado que a inflação funciona como um imposto. Se o índice de preços é de 10% e o nosso rendimento só aumenta 5%, temos uma perda de 5%. Deixamos de conseguir comprar exatamente o mesmo com o mesmo dinheiro. O efeito é permanente", explica Nuno Rico, economista da Deco Proteste. Nuno Fernandes, professor no IESE, em Espanha, vê a inflação atual como temporária e, tal como o Governo já defendeu, a subida acentuada dos rendimentos poderia ter o efeito contrário ao pretendido.
Peso da alimentação
Com base em dados do Instituto Nacional de Estatística, o exercício consiste em colocar todas as despesas de uma casa com dois adultos e um dependente "em cima da mesa" e tendo em conta que os gastos são sempre superiores, por exemplo, com alimentação e energia, comparativamente à despesa com idas ao restaurante, basta atualizar todos os valores do orçamento familiar, usando a inflação acumulada entre 2014 e 2023, mas atribuindo pesos diferentes a cada categoria da despesa. Os gastos com alimentação deverão subir 22% no espaço de dez anos.
Em que medida é que os salários acompanharam a escalada dos preços no espaço de tempo considerado (2014-2023)? Embora o setor público possa vir a registar um aumento nominal superior a 13% na década, tendo em conta uma atualização prevista de 5,1% para o próximo ano, a verdade é que haverá uma perda de 3,9% por via da inflação. No caso dos privados, espera-se uma subida das remunerações de 3,60% em 2023, o que daria um ganho acumulado na década de 15%. No entanto, devido à inflação, deverá verificar-se uma perda real de 2%.
Se o mercado funcionasse, o cenário seria diferente. Há aumentos de preços conjunturais que se tornam permanentes? "A tendência de os preços não voltarem para trás só é invertida quando há uma crise. Em 2011-13, houve uma quebra de rendimentos e os vendedores acabaram por reduzir as margens, baixando os preços de venda devido à menor procura. Na realidade, a inflação baixa entre 2014 e 2021 deveu-se ao acomodar dos efeitos da crise de 2011-13", afirma Nuno Rico.
A Europa pode estar à beira de uma recessão. "Este contexto de inflação é muito perigoso, uma vez que tem mais a ver com o aumento de custos e não com a procura excessiva. Começo a recear que a subida das taxas de juro pelo Banco Central Europeu (BCE) possa não ter efeito. O atual nível de endividamento das famílias é muito significativo", alerta Nuno Rico.
Exemplos
+66%
A batata branca passou de 0,35, em 2015, para 0,58 euros/kg, em 2022, nos mercados abastecedores.
+45%
A alface frisada nacional de ar livre passou de 0,55, em 2016, para 0,80 euros/kg, em 2022.
Alertas
Pior que em 2008
Em 2008, a taxa de juro estava nos 5%, mas a inflação é agora quatro vezes superior à então registada. O BCE admite que a taxa de juro possa chegar aos 4% ou 5% em 2023. "É a tempestade perfeita", sublinha Nuno Rico, da Deco.
Crédito à habitação
Recentemente, o governador do Banco de Portugal quis desfazer um mito. Do total das famílias com crédito à habitação, cerca de 30% têm taxa de juro variável. E mais de metade daquele segmento pertence às famílias dos dois níveis com maiores rendimentos, enquanto apenas 8% pertencem às de menores rendimentos.
Preços das casas
Em 2013, o valor dos novos contratos de crédito à habitação andava pelos 70 mil euros, mas em 2021 saltou para 125 mil. O preço por metro quadrado aumentou três vezes mais do que os rendimentos.
Medidas pontuais
Os governos tentam compensar os efeitos nefastos da inflação com entregas diretas e pontuais de rendimento às famílias. Esse foi o caso dos 125 euros e, mais recentemente, dos 240 euros. As novas tabelas de retenção de IRS tentam também dar liquidez mensal às famílias, diminuindo os reembolsos.
"Grande parte da inflação é temporária"
Nuno Fernandes, professor de Finanças no IESE Business School, em Espanha
Nuno Fernandes tem uma visão muito semelhante à do Governo português: aumentar os rendimentos de forma alinhada com a inflação pode alimentar ainda mais a espiral ascendente dos preços.
Os preços quando sobem não voltam para os níveis anteriores? Porquê?
A análise dos preços antes e depois é complexa. Neste caso, tivemos uma inflação muito relacionada com aumentos de preços de energia e de matérias-primas. No entanto, existem também efeitos fiscais, uma vez que as políticas de impostos (nomeadamente sobre os combustíveis) foram também alteradas. Assim, mesmo que a cotação do barril de petróleo desça muito, não é de esperar igual descida dos preços de venda ao público. De facto, com a política fiscal em vigor, irão terminar isenções de alguns impostos. Ou seja os preços de venda ao público não irão descer tanto como o petróleo no mercado internacional.
A inflação atual é induzida pelo aumento de custos e não pelo consumo? Justifica-se a contenção nas atualizações das pensões e dos salários?
As espirais inflacionistas são um mal muito conhecido em vários mercados emergentes, e foram responsáveis por algumas crises e recessões muito significativas que alguns destes países tiveram no passado. Neste sentido, e uma vez que grande parte da inflação tem uma componente temporária, parece-me razoável a política de contenção de remunerações e de pensões. A não ser assim, o aumento de ambas iria levar a uma continuada espiral de custos e, consequentemente, dos preços no futuro.
O Governo devia ter uma dupla política de aumento dos rendimentos e de incentivo à poupança?
As políticas de apoio a poupança são importantes, mas não têm qualquer ligação, na minha opinião, com a situação inflacionista pela qual estamos a passar. Já existiram no passado incentivos muito mais substanciais à poupança. A inexistência destes apoios e incentivos é um fator que não ajuda o mercado de capitais português. Uma vez que a maior parte da poupança dos portugueses não é dirigida ao mercado de capitais, também as nossas empresas não podem recorrer de forma sistemática a este mercado, e ficam assim mais restritas nas suas fontes de financiamento.