Inquieta-me a proveniência e a frescura do peixe. Gosto sempre de saber o que estou a comer e procuro a justiça nas críticas que faço aos restaurantes
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Certo dia, na peixaria de uma grande superfície, assisti a uma cena que jamais vou esquecer. Tirei a proverbial senha para peixe amanhado, e esperei. Estávamos mais ou menos na altura dos santos populares, como agora, e já foi há mais de dez anos. Quando se vai muitas vezes à mesma praça ou à mesma loja, desenvolve-se um certo sentido tribal de pertença e acabamos por criar relações com quem começamos nos cruzamos. Não era o caso do indivíduo que eu tinha antes de mim, para ser atendido. Eis senão quando sai de dentro da peixaria uma funcionária com dois carrinhos cheios de embalagens. Movido pela curiosidade, aproximei-me e percebi que se tratava de sardinhas amanhadas e escaladas. Atrevi-me e perguntei ao meu companheiro improvisado de espera se era profissional de restauração. Sim, era e tinha ido levantar a encomenda diária de 12 dúzias de sardinhas para levar para o seu estabelecimento. Mas o senhor pode facilmente filetar as sardinhas na sua cozinha, disse-lhe, atrevidamente. Sim, posso mas aqui vai o trabalho já feito. E não lhe fica caríssimo? Fica mais caro, mas os meus clientes suportam a margem. Gostei do raciocínio, mas fiquei inquieto por o meu interlocutor não se dar conta de que podia comprar muito mais barato se fosse ao mercado mais próximo e depois trabalhasse o peixe com o seu pessoal de cozinha. Conversámos um bocado mais e percebi o racional da sua operação. Ele procedia assim com todo o peixe que comprava. Grosso modo, gastava o triplo do que podia gastar se comprasse melhor. Mas isso nem o abalou, estava firme no seu propósito e no seu modo de trabalhar. Felizmente, não faço ideia do restaurante de que era proprietário, o pudor tolheu-me a língua e ainda bem. Todos os restauradores que conheço bem fazem um esforço hercúleo para conseguir comprar o melhor produto possível, utilizando os recursos humanos que controlam e sustentam. Na eterna questão de o peixe ser de mar ou viveiro, que me ocupa bastante o tempo, chego depressa à conclusão de que na maioria dos casos o peixe provém de aquacultura. Nos chamados restaurantes de diária, esse fabuloso recurso que alimenta a massa trabalhadora ao almoço, a relidade é essa. O que me deixa um pouco mais sossegado, e ao mesmo tempo inquieto com a indeterminação quanto à proveniência do peixe. Somo a este problema um outro, que me afeta na minha vida e que tem a ver com o sentido de justiça subjacente à da crítica. Falo da honestidade dos empresários de restauração e de como isso pode levantar questões básicas de saúde pública. Num restaurante de sushi, corremos riscos que vão de consideráveis a graves. Certa vez, deram-me vieiras estragadas num combinado de sushi/sashimi que me revoltou, a ponto de pedir explicações ao chef. Correu bem, ele anuiu e reconheceu a pecha em que tinha incorrido. Mas muitas vezes terá acontecido eu nem ter dado pela troca do fresco pelo cansado. Na avaliação de um restaurante, contudo, sempre que contemporizo estou a ser injusto para com os demais. Por isso me atenho ao princípio basilar de saber sempre o que estou a comer.