Muito por causa de Agatha Christie, conhecer o Egito era um sonho de menina. Devorei, e repeti, todos os livros dela e "Morte no Nilo" fascinou-me, talvez por ter tudo o que faltava à minha banal vida de adolescente: mistério, glamour, exotismo
Corpo do artigo
O desejo era antigo, mas só no ano passado os astros se alinharam para me levar até à civilização que floresceu em torno do gigante que fertiliza 11 países antes de desaguar no Mediterrâneo. Não raras vezes, de tão adiados, os sonhos redundam em frustração porque ficam muito aquém dos cenários que fomos tecendo na nossa imaginação. Não foi o caso. O Egito arrebatou-me. Das pirâmides aos templos, das cores aos cheiros, da grandiosidade da civilização antiga ao caos das cidades atuais. Tudo no Egito é excessivo, intenso, quente, apelativo. Sensorial. Emocional.
Um dos pontos do roteiro era a subida ao monte Sinai, mas, entre tantas excitações, confesso que não reparei que implicava trepar quase 2300 metros de madrugada para chegar ao cume onde Moisés terá recebido as Tábuas da Lei (dez mandamentos) ao nascer do sol. Depois de quase longas quatro horas de autocarro, avistei o mosteiro de Santa Catarina, no sopé do Sinai. Estava uma noite limpa, o céu mais estrelado que vi na vida, e fria. Como a necessidade de uns é oportunidade de negócio para outros, não faltava quem vendesse ponchos e eu lá regateei o meu afago por cinco euros.
E a subida começou. Devia ser uma da manhã. O guia, um beduíno de 23 anos que era também apicultor e enfermeiro, conduziu o grupo pela montanha só iluminada pela lua minguante com o profissionalismo de quem faz o trajeto duas vezes por semana. O Caminho de Moisés, sulcado no granito, é estreito, irregular, íngreme. Antes de chegar a meio, pensei que não ia aguentar. O frio e o cansaço de uma direta pesavam, o ar parecia-me já rarefeito e eu só fazia contas de cabeça para ver quanto tempo demoraria até ao topo ou se voltasse para trás, e se conseguiria fazê-lo sozinha. Recorrer ao dromedário que seguia o grupo não era opção. Caminhava em silêncio, eu e as minhas dúvidas. Até que num dos muitos cafés de montanhas, bebi um chá e comi um pão feito na hora que me pareceu o melhor pão do Mundo e percebi que não havia lugar melhor em todo o universo para estar naquele momento. Completamente renovada, fiz-me ao caminho e só parei no último posto antes do cume. Eram cinco da manhã, a temperatura caíra a pique e fui salva, mais uma vez, pelo empreendedorismo egípcio: aluguei um cobertor tão pesado quanto duvidoso para aguentar o resto da escalada. E aí compreendi que a verdadeira prova ia começar. Agora era a sério - 750 degraus estreitos, inclementes para os distraídos, sempre a subir. Nem os dromedários se atreviam naquele trajeto. Os peregrinos mais frágeis, e são muitos, contratam por 20 euros os braços de um beduíno para se apoiarem. Vi pessoas idosas, de muletas, a subirem com um fervor que só a fé explica.
A chegada ao pico foi um descarregar da adrenalina, mas o melhor estava para vir. Centenas de pessoas expectantes, viradas a nascente, à espera que o sol se espreguiçasse. O momento em que o globo de fogo emergiu entre as montanhas assemelhou-se a uma cerimonial milimetricamente coreografado para extasiar os vulgares mortais. Apoteótico, posso dizê-lo, sem cair na hipérbole. Escusado será dizer que depois de tão árdua subida, a descida foi um passeio de meninos. Não sei se voltarei ao Sinai, mas tenho a certeza que subi bem mais do que uma montanha. E como ainda não foi desta que fiquei hospedada no Old Cataract, o hotel no Assuão debruçado sobre o Nilo onde Agatha Christie escreveu a sua obra nos finais da década de 1920, é bem provável que volte ao Egito.