A cozinha nacional é por um lado expressão conjunta de várias cozinhas regionais, por outro o fantástico corpo autónomo inventado por todos e por ninguém em particular.
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No seu grande manifesto estético "O Retrato de Dorian Gray", o genial escritor Oscar Wilde estabelece uma frase liminar. O casal perfeito é composto por uma mulher com um passado e um homem com um futuro. Em inglês percebe-se melhor: "a woman with a past, a man with a future". Desde os meus tempos de British Council, de acesso franco à sua compostíssima biblioteca que transporto comigo este dito intemporal. O legado e a tradição enquanto contribuição eminentemente feminina, a força e a virilidade como contribuição masculina. Há muitas verdades escondidas nesta frase simples, e muito a aprender. Gosto da clareza de raciocínio e da espantosa acuidade com que o escritor irlandês descreve o óbvio, aquele em que nós próprios muitas vezes nem atentamos.
O périplo que tenho feito ao longo da vida por restaurantes nacionais e internacionais tem vindo a sublinhar a proximidade familiar como a mais determinante característica de um restaurante. Ainda vive muito, quase totalmente, dos dois primeiros postulados: proximidade geográfica e proximidade familiar. A formulação do conceito de proximidade é inteiramente da minha autoria, e por isso a assumo na forma completa. Duas outras completam a minha formulação. São elas a proximidade cultural e a proximidade técnica.
Concentremo-nos, para já, nas duas primeiras proximidades. A geográfica tem significado óbvio e tem tudo a ver com as cozinhas regionais que encontramos ao longo da vida. Uma delas é por definição matricial em nós e é expressão da cozinha materna, fixada pela mãe ou pela avó, à qual fomos expostos na infância e juventude. É no fundo a expressão de raízes. Não deve contudo ser confundida com a proximidade familiar - pelo menos no sentido em que me interessa aqui abordar - e que tem a ver com a fixação de receituário. Falo dos famosos livros de receitas que vivem nas famílias. Receitas essas que ainda constituem a quase totalidade dos cardápios dos restaurantes de cozinha a que gostamos de chamar tradicional.Genericamente, a cozinha da avó é a corporização da tradição de que Oscar Wilde falava. De vez em quando, as receitas ganham vida e abrilhantam lugares públicos que outrora foram a casa de alguém. E ainda bem! É por isso que a cozinha nacional é por um lado expressão conjunta de várias cozinhas regionais, por outro o fantástico corpo autónomo inventado por todos e por ninguém em particular.
Faz também parte da proximidade familiar um dos seus blocos constitutivos mais importantes. Tem a ver com a portugalidade que herdámos naturalmente das antigas colónias. Muamba, caril, calulu, cachupa, cafriela e tantos outros pratos entraram no quotidiano nacional sem qualquer resistência nem oposição. Hoje praticamos muitos deles nos nossos lares, haja ou não experiência de infância que justifique a ligação. Ao mesmo tempo, a busca da perfeição instalou uma procura crescente junto de hipermercados e negócios locais, para encontrar os ingredientes necessários. Devemos e queremos saber sempre mais. A prodigiosa cozinha portuguesa é imparável, temos muito a aprender.
