Uma boleia no guarda-chuva de um anónimo, uma criança que quer começar uma corrente de generosidade e o medo de a bondade ser mal interpretada
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Parti do Porto com sol, cheguei a Lisboa com o céu zangado e, quando saí da redação, na altura no histórico edifício da Avenida da Liberdade, chovia copiosamente. E eu sem guarda-chuva. Ainda esperei uns minutos e ponderei chamar um táxi, mas a distância era curta e não quis enfrentar a fúria de um motorista com uma corrida tão breve. A hora da entrevista aproximava-se e eu, sem alternativas, fiz-me à vida, que é como quem diz à chuva. Estuguei o passo e, antes de conseguir atravessar a avenida, o semáforo passou a vermelho e eu fiquei ali retida, a ser regada por uma chuva inclemente.
Nesse momento, sinto alguém aproximar-se pelo meu lado direito. E ouço uma voz masculina, muito suave, a perguntar: “Quer abrigar-se aqui?”. O aqui era um guarda-chuva preto, enorme, que naquele momento me pareceu o mais seguro dos refúgios. Disse que sim, agradeci muito e abriguei-me da intempérie. “Já estava a vê-la há algum tempo, mas hesitei. Não quis ser mal interpretado”, disse. Perante a minha perplexidade, desenvolveu. “Nos tempos que correm, tudo pode ser mal interpretado.”
Este episódio tem mais de dez anos e, por estes dias, tornou-se mais presente porque revi “Favores em cadeia” (“Pay it forward”, no original), um filme realizado no dealbar do século XXI por Mimi Leder e que conta a história de Eugene Simonet, um professor que, no início do ano letivo, apresenta um original desafio aos alunos: encontrar uma forma de melhorar o mundo. Trevor, um dos miúdos, leva a tarefa muito a sério e arranja três pessoas a quem terá de fazer algo de muito significativo e, como retribuição, cada uma terá de fazer o mesmo a outras três, numa cadeia de generosidade mais ou menos aleatória que, calculava Trevor, poderia ter um crescimento exponencial. A ideia, e o próprio filme, não são propriamente geniais, mas causaram-me profundo impacto. Lembro-me de na altura me ter emocionado no cinema (sim, sou piegas e não é raro chorar a ver filmes) muito por conta das excelentes interpretações. Kevin Spacey - muito antes da sua fulgurante carreira ter sido arrasada por acusações de assédio e lutar agora pelo regresso depois de ter sido inocentado - tem uma interpretação contida e irrepreensível no desfigurado professor. Helen Hunt, subtil e vulnerável, é uma mãe com problemas de álcool que luta por dar a melhor vida possível ao filho. Mas o melhor é mesmo Haley Joel Osment, o menino-prodígio de “Sexto sentido” que, como tantas estrelas precoces, não cumpriu as elevadíssimas expectativas (recentemente protagonizou alguns desacatos sob efeito de drogas). Trevor é a criança que todos nós sonhamos ser antes de o mundo nos convencer da inutilidade dos nossos esforços.
Depois de atravessarmos a avenida, a chuva caía ainda mais furiosamente. O meu salvador anónimo prontificou-se a dar-me boleia no seu guarda-chuva até ao hotel. Falámos alguns minutos. Já não me lembro do seu rosto. Quando penso nele, vejo Trevor. E sorrio. Porque sei que, afinal, há favores em cadeia por aí.
Parti do Porto com sol, cheguei a Lisboa com o céu zangado e, quando saí da redação, na altura no histórico edifício da Avenida da Liberdade, chovia copiosamente. E eu sem guarda-chuva. Ainda esperei uns minutos e ponderei chamar um táxi, mas a distância era curta e não quis enfrentar a fúria de um motorista com uma corrida tão breve. A hora da entrevista aproximava-se e eu, sem alternativas, fiz-me à vida, que é como quem diz à chuva. Estuguei o passo e, antes de conseguir atravessar a avenida, o semáforo passou a vermelho e eu fiquei ali retida, a ser regada por uma chuva inclemente.
Nesse momento, sinto alguém aproximar-se pelo meu lado direito. E ouço uma voz masculina, muito suave, a perguntar: “Quer abrigar-se aqui?”. O aqui era um guarda-chuva preto, enorme, que naquele momento me pareceu o mais seguro dos refúgios. Disse que sim, agradeci muito e abriguei-me da intempérie. “Já estava a vê-la há algum tempo, mas hesitei. Não quis ser mal interpretado”, disse. Perante a minha perplexidade, desenvolveu. “Nos tempos que correm, tudo pode ser mal interpretado.”
Este episódio tem mais de dez anos e, por estes dias, tornou-se mais presente porque revi “Favores em cadeia” (“Pay it forward”, no original), um filme realizado no dealbar do século XXI por Mimi Leder e que conta a história de Eugene Simonet, um professor que, no início do ano letivo, apresenta um original desafio aos alunos: encontrar uma forma de melhorar o mundo. Trevor, um dos miúdos, leva a tarefa muito a sério e arranja três pessoas a quem terá de fazer algo de muito significativo e, como retribuição, cada uma terá de fazer o mesmo a outras três, numa cadeia de generosidade mais ou menos aleatória que, calculava Trevor, poderia ter um crescimento exponencial. A ideia, e o próprio filme, não são propriamente geniais, mas causaram-me profundo impacto. Lembro-me de na altura me ter emocionado no cinema (sim, sou piegas e não é raro chorar a ver filmes) muito por conta das excelentes interpretações. Kevin Spacey - muito antes da sua fulgurante carreira ter sido arrasada por acusações de assédio e lutar agora pelo regresso depois de ter sido inocentado - tem uma interpretação contida e irrepreensível no desfigurado professor. Helen Hunt, subtil e vulnerável, é uma mãe com problemas de álcool que luta por dar a melhor vida possível ao filho. Mas o melhor é mesmo Haley Joel Osment, o menino-prodígio de “Sexto sentido” que, como tantas estrelas precoces, não cumpriu as elevadíssimas expectativas (recentemente protagonizou alguns desacatos sob efeito de drogas). Trevor é a criança que todos nós sonhamos ser antes de o mundo nos convencer da inutilidade dos nossos esforços.
Depois de atravessarmos a avenida, a chuva caía ainda mais furiosamente. O meu salvador anónimo prontificou-se a dar-me boleia no seu guarda-chuva até ao hotel. Falámos alguns minutos. Já não me lembro do seu rosto. Quando penso nele, vejo Trevor. E sorrio. Porque sei que, afinal, há favores em cadeia por aí.