Para os regimes alimentares serem mais respeitadores do ambiente e melhores para a saúde das pessoas, são necessárias alterações profundas na produção e no consumo.
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Quando era ainda um jovem cientista, Christian Bugge Henriksen nunca se importou de sujar as mãos. Calçou as suas galochas para estudar os nutrientes do solo em campos de cevada e batata na sua Dinamarca natal.
Henriksen leciona cursos universitários de jardinagem alimentar e silvicultura desde essa altura. Também semeou questões sobre que tipos de alimentos são melhores para a saúde pública e para o planeta.
Calorias caras
"O nosso sistema alimentar atual tem um enorme impacto no ambiente, na biodiversidade, nos solos e nos recursos hídricos", afirmou Henriksen, professor associado do Departamento de Ciências Vegetais e Ambientais da Universidade de Copenhaga. "Temos também muitos problemas de saúde causados pela obesidade e pela má nutrição".
A produção alimentar é responsável por cerca de um terço das emissões globais de gases com efeito de estufa, contribui para a destruição de espécies e ecossistemas e é uma das principais razões pelas quais mais de metade dos adultos na UE têm excesso de peso.
Henriksen acredita que deve existir uma forma melhor de fazer comida saborosa com menos impacto para o ambiente e para a cintura das pessoas.
Lidera um projeto de investigação que recebeu financiamento da UE para envolver os europeus, incluindo crianças, jovens adultos, agricultores e representantes do sector alimentar, para ajudar a Europa a afastar-se da produção alimentar industrializada, centrada em grande parte na pecuária. O projeto, denominado CLEVERFOOD, teve início em janeiro de 2023 e decorre até ao final de 2026. Conta com participantes de nove países: Bélgica, Dinamarca, Grécia, Hungria, Itália, Países Baixos, Polónia, Portugal e Espanha.
"Precisamos de um sistema alimentar que seja justo, saudável e sustentável", afirmou Henriksen. "Infelizmente, não é isso que temos neste momento".
Todos os sistemas prontos
Para o conseguir, é necessária uma mudança generalizada e coordenada.
Isso significa atuar em muitas frentes diferentes ao mesmo tempo: alterar os hábitos dos consumidores, produzir e transformar localmente, reduzir a utilização de água e energia, reciclar nutrientes, garantir que se deitam menos alimentos fora, reduzir os resíduos de embalagens e, não menos importante, criar um quadro institucional que estimule a mudança e a alimente.
"Precisamos de uma transformação no sistema alimentar", afirma Kerstin Pasch, agrobióloga e diretora do Instituto Alemão de Tecnologias Alimentares, em Bruxelas, capital da Bélgica.
Lidera outro projeto à escala europeia para criar uma dinâmica de renovação da forma como os alimentos são produzidos e consumidos no continente. Denominada FOSTER, a iniciativa, com a duração de quatro anos, deverá decorrer até agosto de 2026 e está a analisar a forma como a divulgação dos conhecimentos e práticas mais recentes pode ser melhorada.
Pasch delineou o desafio pintando uma imagem do sistema que é muito mais complexa do que a simples imagem de um agricultor numa quinta.
O sistema alimentar inclui um grande número de pessoas envolvidas na produção, transformação, armazenamento, venda, consumo e eliminação de alimentos. Todos os envolvidos devem compreender o seu papel e o impacto das suas ações, segundo Pasch.
"O sistema alimentar é muito mais do que apenas a produção agrícola", afirmou.
Orquestrar a mudança
O Pacto Ecológico Europeu tem como objetivo tornar a UE neutra em termos climáticos até 2050. A estratégia da UE Do prado ao prato e as recentes alterações da Política Agrícola Comum ajudarão a reestruturar o sistema alimentar em conformidade com os objetivos ambientais da Europa. Uma iniciativa de investigação da UE denominada Alimentação 2030 está a traçar o caminho a seguir, ouvindo a ciência.
É aí que entram projetos como o CLEVERFOOD e o FOSTER. Reúnem um vasto leque de intervenientes que lutam por um sistema alimentar mais justo, mais saudável e mais sustentável, criando uma dinâmica para mudanças reais na produção, distribuição, venda a retalho e consumo.
"Precisamos de uma agricultura mais sustentável, o que significa produzir alimentos suficientes sem ter um impacto negativo na próxima geração", afirmou Pasch. A CLEVERFOOD criou uma plataforma em linha para numerosas iniciativas financiadas pela UE com uma visão partilhada. Segundo Henriksen, já atraiu mais de 70 empresas com um investimento combinado superior a 450 milhões de euros.
"O objetivo é facilitar a mobilização dos cidadãos europeus, (incluindo crianças, jovens, agricultores, empresários, investidores, investigadores e educadores). bem como dos decisores políticos para transformar o sistema alimentar", afirmou.
O poder das pessoas
Em última análise, a verdadeira mudança terá de resultar de uma combinação de abordagens do topo para a base e da base para o topo.
Pasch chama a atenção para o papel das autoridades locais e das organizações de base na promoção da transformação. Na Alemanha, por exemplo, o conselho de política alimentar da Região da Cidade de Estugarda, um parceiro da FOSTER, está a encorajar as cantinas escolares a adquirirem ingredientes de produtores locais de alimentos e a ajudar os agricultores a processarem as suas colheitas mais perto de casa.
Na Sérvia, uma iniciativa está a ajudar os agricultores a melhorar a produção através de novas tecnologias. Uma aldeia digital procura tornar o trabalho e a vida no campo mais atrativos, especialmente para os jovens. Nos Países Baixos, uma Aliança para a Transição Alimentar com cerca de 200 membros quer acelerar a mudança para que os preços dos alimentos reflitam os seus verdadeiros custos, incluindo no que toca ao impacto ambiental.
Para este grupo, o lema "acabar com a fome", que orientou grande parte da política agroalimentar na Europa durante o período pós-guerra, tem de mudar para "uma vida saudável num planeta saudável. Para todos".
Pasch concorda.
"Após a Segunda Guerra Mundial, o grande objetivo era produzir alimentos em quantidade suficiente", afirmou. "Hoje, produzir mais alimentos já não é suficiente".
Tentações da carne
Uma forma de reduzir a pegada ambiental do sistema alimentar é reduzir o papel da carne.
"Os atuais níveis de produção e consumo de carne não são sustentáveis a longo prazo", afirmou Henriksen.
Atualmente, a carne é uma importante fonte de proteínas. O seu consumo tende a aumentar à medida que as pessoas ficam mais ricas e, nos últimos 50 anos, a produção de carne a nível mundial terá, pelo menos, triplicado. Cerca de 5 mil milhões de hectares, ou seja, 38% da superfície mundial, são cultivados a nível global.
Cerca de 40% das terras de cultivo do mundo inteiro destinam-se a alimentar animais e não os seres humanos.
Isso não quer dizer que tenhamos de nos tornar todos vegetarianos. Mas consumir menos carne significaria criar menos animais, deixando mais espaço para cultivar plantas ricas em proteínas. Isso, por sua vez, contribuiria para o clima e a biodiversidade.
Velhos hábitos, novas oportunidades
A atividade de criação de animais para alimentação humana tem uma longa história na Europa, pelo que qualquer transição para dietas mais baseadas em plantas deve encorajar novas práticas empresariais.
Na Dinamarca, por exemplo, existe uma plataforma de contactos para agricultores que cultivam leguminosas.
Está a ajudar a construir uma comunidade de produtores que podem trocar recomendações sobre melhores práticas e mercados. Outra iniciativa nacional está a estudar variedades de aveia, ervilhas e favas para melhorar o sabor, o valor nutricional e outras características voltadas para a qualidade dos alimentos à base de plantas.
"Se os agricultores cultivarem estas variedades em vez de se limitarem a monocultura, podem conseguir um preço mais elevado", afirmou Henriksen.
Quer seja na Dinamarca ou na Sérvia, na Alemanha ou nos Países Baixos, ou em muitos outros países europeus, a revisão do sistema alimentar europeu já não é apenas debatida, mas também posta em prática.
A aceleração das mudanças em todo o sistema alimentar será o principal desafio dos próximos anos.
"Diferentes projetos e iniciativas podem visar alguns componentes isolados do sistema alimentar, mas normalmente não todo o sistema", afirmou o cientista. "É disso que precisamos neste momento para o bem das pessoas e do planeta."
A investigação neste artigo foi financiada pela UE. Os pontos de vista dos entrevistados não refletem necessariamente os da Comissão Europeia.
Alimentação 2030
A UE está a tentar estimular uma transição para sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e inclusivos através do seu quadro estratégico de investigação e inovação denominado "Alimentação 2030".
A "Alimentação 2030" é impulsionada pela constatação de que os atuais padrões de produção e consumo são afetados por, e contribuem para, crises como a subnutrição, as alterações climáticas, o declínio da biodiversidade e a escassez de recursos.
O quadro reúne agentes de investigação e inovação de diferentes áreas que procuram enfrentar desafios interrelacionados através de uma abordagem sistémica e com múltiplos intervenientes.
Os principais objetivos incluem aprofundar conhecimentos e desenvolver soluções com impacto que promovam regimes alimentares saudáveis e sustentáveis; sistemas alimentares circulares, ambientalmente inteligentes e ecológicos; bem como comunidades resilientes e capacitadas. Pretende ainda incentivar novos modelos empresariais, reforçar capacidades e sensibilizar para a transição justa e equitativa dos sistemas alimentares, respeitando os limites do planeta.
Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.