Núcleos de Investigação e Apoio a Vítimas Específicas do Porto e de Penafiel trabalham dia e noite para levar agressores à Justiça.
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Alice - o nome é fictício, para proteger uma mulher que ainda vive com medo - foi agredida e ameaçada de morte pelo marido e pai dos seus filhos menores, com quem nunca imaginou viver aquele momento de terror que "não se esquece" e que tem gravado na fita da memória, como um filme. Sequência após sequência. Com a ajuda dos profissionais do Núcleo de Investigação e Apoio a Vítimas Específicas (NIAVE) do Porto da GNR, divorciou-se, está a tentar ser feliz numa nova vida e deixa uma mensagem de coragem a outras mulheres na sua situação: "Não precisam de ter medo de expor os crimes".
Meses depois da detenção e condenação do agressor a prisão efetiva, confessa ao JN que, na altura, não quis denunciar a situação às autoridades. "Tive medo de que a Justiça não fizesse nada. E muita vergonha, também. Não queria depor. Só de imaginar que tinha de ir à Polícia... Emocionalmente [o episódio de agressão] é tão gigantesco que só queremos sair dali; não queremos lidar com o pesadelo", reconhece.
A violência doméstica tem a brutalidade de ser sempre dupla: além das agressões, físicas e verbais, há o impacto de o agressor ser alguém com quem a vítima tem fortes vínculos afetivos. "As lesões são muito mais profundas do que as físicas", dirá Alice, olhar perdido nas recordações amargas.
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Vizinhos meteram a colher
O terror ouvido pelos vizinhos na casa da família, no distrito do Porto, levou-os a alertar a Guarda que, no local, se deparou com um cenário de grande violência e acionou o Núcleo de Investigação e Apoio a Vítimas Específicas (NIAVE) do Porto da GNR. Com militares especializados e que dispõem agora de mais ferramentas que permitem acelerar os procedimentos a adotar nas 72 horas a seguir à denúncia, de imediato ajudaram Alice a enfrentar o "pesadelo", por ela narrado "detalhadamente". E efetuaram diligências urgentes para acabar com a violência.
A descrença inicial acabaria por dar lugar à confiança na atuação das autoridades policiais e judiciais, ao perceber que "o processo foi muitíssimo bem encaminhado", e, hoje, esta mulher acredita que o seu testemunho pode dar alento a outras vítimas e incentivá-las a procurar ajuda e a denunciar a violência de que são alvo. "Não precisam de ter medo de expor os crimes", diz, lembrando todo o "cuidado" que sentiu desde a chegada da patrulha da Guarda ao local.
"Senti-me sempre protegida"
"Os GNR que não têm formação específica na área foram sensíveis, e perceberam que era um caso grave e delicado, mas a equipa do NIAVE tem um cuidado extremo na forma como conduz o processo e como aborda a vítima e os seus medos. Estavam preparados para fazer perguntas, para lidar com a situação e para me deixar respirar quando eu precisasse", descreve Alice. "Explicaram-me o que podia acontecer, que ajudas poderia ter e a quem podia recorrer. E deram-me um contacto direto, para o qual poderia ligar em caso de necessidade. Senti-me sempre protegida".
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E recorda, agradecida: "A militar que esteve comigo foi muito delicada; teve uma sensibilidade e um cuidado muito grandes. À noite, notei que estava cansada, mas nada a demoveu e isso foi muito importante para mim. Foi sempre muitíssimo profissional, prestável e cuidadosa nas perguntas. Há ali um lado muito humano, e isso faz toda a diferença, porque estamos muito fragilizadas e queremos alguém que perceba o que estamos a sentir".
"A violência doméstica começa de forma muito subtil, e há um escalar da situação. Tem muitas entrelinhas, e é aqui que está a dificuldade das autoridades e dos tribunais em perceber o que realmente é e onde se enquadra", aponta Alice, consciente da tentativa que fez de "desvalorizar, no início", as intimidações que iam subindo de tom. Estava refém de expectativas individuais e sociais. "Vai-se ficando. É a família, os filhos, o facto de gostar dele e de estar casada. Há aquela coisa cultural de que devemos segurar o casamento", admite. Alice divorciou-se e, hoje, tenta ser feliz. E aprende a libertar-se também do medo.
31 mulheres assassinadas em Portugal desde o início do ano, 17 das quais em contexto de relações de intimidade. Segundo o Observatório das Mulheres Assassinadas, da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), já foram mortas 564 mulheres desde 2004.
Procedimentos
Outros crimes
A maior parte dos casos tratados nos núcleos do projeto IAVE (Investigação e Apoio a Vítimas Específicas) são situações de violência doméstica, mas também é prestado apoio a vítimas especialmente vulneráveis, por exemplo em casos de maus-tratos ou de abuso sexual, entre outros crimes.
Risco avaliado
Os militares da GNR avaliam o grau de risco das vítimas com recurso à ficha RVD (risco em violência doméstica). No caso de risco elevado, a vítima é acompanhada nos dias subsequentes à denúncia.
Memória futura
O Comando do Porto da GNR tem uma sala de entrevista forense para ouvir as vítimas para memória futura, com capacidade técnica de gravação áudio e vídeo, evitando nova inquirição e novo trauma. Este procedimento é requerido pelo Ministério Público ao juiz de instrução.
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MP especializado
A Secção Especializada Integrada de Violência Doméstica no Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto do Ministério Público é um projeto-piloto que arrancou este ano e "veio trazer mais proximidade" na articulação com as polícias, nota o tenente-coronel Babo Nogueira.
Atuação em 72 horas
As polícias devem, nas 72 horas seguintes à denúncia de violência doméstica, avaliar a situação da vítima e desencadear um processo crime que "é sempre de natureza urgente". Violência sobre pessoas em situação de especial vulnerabilidade como crianças, idosos ou deficientes que coabitem com o agressor também é crime.
Detenção do agressor
O agressor pode ser detido em flagrante delito e o Ministério Público fazer uso do processo sumário, ou fora de flagrante delito, podendo haver processo abreviado. Mesmo posteriormente ao crime podem ser emitidos mandados de detenção do agressor fora de flagrante delito, se houver perigo de continuação das agressões ou se tal for necessário para assegurar a proteção da vítima.