Mais de dois anos e meio depois do assalto a Tancos, o primeiro-ministro, António Costa, admite, ao responder por escrito ao juiz Carlos Alexandre na instrução do processo, que ainda não consegue precisar qual foi o armamento furtado dos paióis ribatejanos a 28 de junho de 2017 e mais tarde recuperado na Chamusca, a 18 de outubro do mesmo ano.
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"Creio que este processo judicial permitirá saber definitivamente a verdade, clarificando qual o material furtado e qual o material recuperado", refere, no documento publicado na quarta-feira no site do Governo, o primeiro-ministro, inquirido como testemunha de Azeredo Lopes, ministro da Defesa à data dos factos e um dos 23 arguidos do processo. Em causa está o facto de, no dia da descoberta do material, ter sido informado de que este fora recuperado e, meses depois, ter sido noticiado "que afinal ainda faltaria recuperar alguns artigos" furtados de Tancos.
Na resposta às 100 perguntas do magistrado, Costa é ainda bastante lacónico a esclarecer se falou com o Presidente da República ou alguém da Casa Militar da Presidência sobre a investigação ao caso e a descoberta do material, alegadamente encenada, segundo o Ministério Público (MP), pela Polícia Judiciária Militar (PJM) em colaboração com elementos da GNR.
Apesar de afirmar que, no dia em que o furto foi conhecido, contactou Marcelo Rebelo de Sousa, é de forma indireta que responde ao ser questionado se o fez num momento posterior. "Nos termos da Constituição da República Portuguesa, mantenho permanentemente informado Sua Excelência o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país", afirma o primeiro-ministro, acrescentando que nunca falou com qualquer pessoa da Casa Militar sobre o assunto em causa.
É, de resto, a negação de qualquer conhecimento de atos fora da lei ou do relacionamento leal entre instituições - incluindo a existência de uma encenação para a recuperação do material - que marca toda a versão do chefe de Governo (ler texto na página ao lado).
MP avalia divulgação
Certo é já que a publicação na íntegra, no site do Governo, do ofício enviado anteontem ao Tribunal Central de Instrução Criminal poderá vir a dar origem a um inquérito por violação do segredo de justiça. Num despacho emitido a meio da tarde de ontem, Carlos Alexandre solicitou ao MP que se pronuncie sobre aquela divulgação, depois de lembrar que tem consciência de que os autos estão em segredo de justiça externo.
A modalidade proíbe a divulgação de atos processuais a agentes exteriores ao processo, mas, segundo a lei, a não ser que exista uma decisão judicial em contrário, os processos são públicos a partir da dedução da acusação. Isto apesar de a mesma lei prever que na fase de instrução - destinada a decidir se existem indícios suficientes para o processo seguir, ou não, para julgamento - só o debate instrutório e a comunicação da decisão serem atos abertos ao público.
Ontem, ainda antes de ser conhecido o despacho do magistrado, o gabinete de Costa justificou a publicação do documento com a circulação que já então se verificava de "versões parciais" do depoimento do primeiro-ministro. Até agora, as diligências desta fase decorreram todas à porta fechada.
Entre os arguidos já interrogados está, precisamente, Azeredo Lopes, suspeito de ter dado cobertura institucional à recuperação encenada do material. Ontem, em declarações à Lusa, o ex-ministro da Defesa garantiu que foi apenas informado pelo seu chefe de gabinete de "aspetos do conteúdo" do memorando da PJM sobre a descoberta e que este não detetou relevância criminal no documento.
Questões
O ex-ministro da Defesa requereu que António Costa fosse inquirido por escrito pelo juiz?
Não. Ao requerer a instrução, o advogado de Azeredo Lopes pediu apenas que o primeiro-ministro fosse inquirido como testemunha. Mas, numa fase posterior, Germano Marques da Silva chegou a admitir prescindir da inquirição do mesmo se o depoimento por escrito fosse prejudicial para o esclarecimento dos factos ou para a celeridade da instrução.
Porque se colocou então a possibilidade de o primeiro-ministro depor por escrito?
Os membros do Conselho de Estado - que Costa integra por inerência do cargo - gozam legalmente de uma "prerrogativa" que lhes permite, se assim o preferirem, depor primeiro por escrito. O primeiro-ministro solicitou àquele órgão que assim fosse e este concordou. O chefe de Governo foi autorizado a responder apenas por escrito.
Tal significa que Costa já não terá de falar presencialmente perante Carlos Alexandre?
Não necessariamente. O Código de Processo Civil estabelece, igualmente, que estas figuras poderão, mesmo após depoimento por escrito, ser chamadas a tribunal pelo juiz, se este decidir "que é necessária a sua presença". O artigo em causa foi já mencionado por Carlos Alexandre em vários despachos.
Algum dos outros intervenientes no processo depôs ou irá depor por escrito nesta instrução?
Não, à exceção de Costa, todas as inquirições têm sido presenciais, tal como pretendia o juiz de instrução. As diligências decorrem em Lisboa.
Processo
Furto e encenação
O inquérito do Ministério Público (MP) abrange duas ocorrências: o furto, a 28 de junho de 2017, de armamento de Tancos e a descoberta encenada do material, na Chamusca, a 18 de outubro do mesmo ano.
Mais de 20 arguidos
O MP acusou, no final de setembro, 23 pessoas, entre as quais o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes e o ex-diretor da Polícia Judiciária Militar, Luís Vieira.
Maioria ligada à farsa
Azeredo Lopes e Luís Vieira são dois dos arguidos, incluindo militares da GNR, suspeitos de participar na encenação. Os restantes estarão ligados ao furto.
Segurança dos paióis
O primeiro-ministro garante, no seu depoimento, que, antes do assalto aos paióis de Tancos, ocorrido na madrugada de 28 de junho de 2017, não sabia quais eram as condições de segurança daquelas instalações militares. Mas admite que o então ministro da Defesa, José Azeredo Lopes, as conhecesse, uma vez que, à posteriori, tomou conhecimento de que este tomara, antes do roubo, medidas para melhorar a segurança daqueles paióis.
informação do assalto
António Costa refere que foi Azeredo Lopes quem o informou do assalto aos paióis de Tancos, no próprio dia em que este foi detetado. Na ocasião, o à data ministro da Defesa adiantou ainda que o Exército tinha já efetuado as diligências "apropriadas" e o Ministério Público (MP) e a Polícia Judiciária Militar (PJM) estavam já a par da ocorrência. A 28 de junho de 2017, contactou ainda o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
reunião com militares
Cerca de duas semanas depois do roubo, a 11 de julho de 2017, Costa reuniu com os chefes do Estado-Maior-General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército, da Marinha e da Força Aérea, que lhe "atestaram" que a segurança das instalações militares "estava assegurada". Verificou, igualmente, que estavam já a ser tomadas "todas as medidas necessárias e possíveis" para evitar ocorrências semelhantes noutros locais. Azeredo Lopes esteve igualmente presente no encontro, convocado pelo primeiro-ministro.
ameaça terrorista
Questionado diretamente sobre se soube que, na lista de material roubado de Tancos, se encontrava material "idêntico" a outro usado em ataques terroristas, Costa responde que, na sequência de uma reunião extraordinária da Unidade de Coordenação Antiterrorismo (UCAT), a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna o esclareceu, "em particular", que "não havia qualquer indício de ligações a ameaça terrorista ou criminalidade organizada". E frisa que nenhum parceiro internacional se mostrou preocupado com a capacidade de Portugal lidar com o caso.
liderança do inquérito
A propósito da consciência que tinha de que, a partir de 4 de julho de 2017, o inquérito ao furto passou a ser liderado pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), com a investigação exclusiva da Polícia Judiciária (PJ) civil e a colaboração institucional da PJM, o primeiro-ministro remete para a nota então emitida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o assunto. O teor desta era, no seu entender, "inequívoco".
Relação com luís vieira
Sobre a relação entre Azeredo Lopes e o coronel Luís Vieira, então diretor da PJM, Costa diz desconhecer qualquer outra relação para além da "institucional". Negou, ainda, ter tido conhecimento de quaisquer conversas entre ambos. ´Só quando questionado sobre o suposto descontentamento de Luís Vieira quanto à liderança da investigação é mais taxativo, para dizer que não falou sobre o tema com o seu ministro.
em defesa de azeredo
Embora reconheça que não sabe se o então ministro da Defesa deu a sua concordância a uma investigação paralela da PJM, o chefe de Governo acredita que tal não aconteceu, uma vez que Azeredo Lopes "sempre desempenhou com lealdade" as suas funções no Executivo.
o primeiro memorando
O primeiro-ministro assegura, com um sintético "não" a várias perguntas, que não teve conhecimento dos três documentos, incluindo uma fita do tempo, que terão sido entregues a Azeredo Lopes pelo então diretor da PJM, numa reunião ocorrida em agosto de 2017. Rejeita igualmente ter sabido de um suposto pedido, no final de setembro, feito por Luís Vieira ao chefe de gabinete do seu ministro da Defesa, tenente-general Martins Pereira, para que o Exército estivesse de prontidão para a eventual descoberta de material de guerra.
recuperação das armas
Costa revela ao juiz Carlos Alexandre que soube que o material de Tancos fora recuperado na manhã do dia em que este foi descoberto, a 18 de outubro de 2017. A informação foi-lhe prestada, por telefone, por Azeredo Lopes, que lhe disse que o material estava já à guarda do Exército, nos paióis de Santa Margarida, a ser alvo de peritagem. E sublinha que o comunicado da PJM emitido nessa mesma ocasião "não permitia supor que a recuperação não tinha sido efetuada no quadro de colaboração institucional" definido pela PGR na nota que esta emitira em julho. Recusa, ainda, ter tido conhecimento, "em algum momento", de uma operação encenada.
o segundo memorando
Quanto ao documento que relataria a encenação e que terá sido entregue por Luís Vieira ao chefe de gabinete de Azeredo Lopes a 20 de outubro de 2017, Costa diz que só o leu um ano depois, após este ter sido disponibilizado ao MP. Ao discuti-lo nessa altura com o seu ministro, ficou com a "convicção" de que este nunca o vira anteriormente. O primeiro-ministro considera ainda que se trata de um documento "apócrifo" e "confuso" que apenas permite concluir que o objetivo da PJM fora recuperar o armamento, proteger um informador e esconder da PJ civil a operação.