Antigo vice-reitor da Universidade de Coimbra foi colhido por comboio, junto à estação de Coimbra-B. Empresa sabia que portas das carruagens podiam ser abertas em locais indevidos e só resolveu problema após morte do professor catedrático.
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Apesar de "uma frequência significativa de eventos relacionados com a abertura das portas em locais indevidos", a CP não procedeu a uma "análise desse risco para o caso das portas de abertura manual" dos comboios de alta velocidade. Também não implementou mecanismos que impedissem que as portas das carruagens pudessem ser abertas quando a circulação acontecia a menos de cinco quilómetros/hora. Só após o acidente que, em janeiro de 2020, matou o professor catedrático da Universidade de Coimbra, Sebastião Tavares de Pinho, junto à estação de Coimbra-B, é que a empresa tomou medidas para travar episódios semelhantes.
A conclusão é do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) e está expressa no relatório que concluiu a investigação ao caso, ocorrido em 23 de janeiro de 2020. Nesse dia, o antigo vice-reitor da Universidade de Coimbra, de 82 anos, regressava a casa, depois de ter participado, em Lisboa, na sessão de homenagem ao professor José V. de Pina Martins.
Pelas 21.33 horas, o comboio no qual viajava, na companhia da esposa de 67 anos, aproximou-se da estação de Coimbra-B e o sistema sonoro da composição anunciou que, em breve, ocorreria a paragem. E, de facto, o comboio parou, respeitando o sinal fechado do sistema de segurança. Mas fê-lo a quase um quilómetro de distância da estação.
Percebei o erro, mas não quis voltar ao comboio
Pensando que o comboio já tinha chegado ao destino, Sebastião Tavares de Pinho abandonou o lugar na carruagem número três e, juntamente com a mulher, abriu a porta e saiu do comboio, sem que a tripulação do Intercidades se apercebesse. "Apesar de os dois passageiros rapidamente constatarem o engano, não voltaram a embarcar por receio que o comboio retomasse a marcha, o que, de facto, veio a acontecer entretanto, decidindo caminhar até à estação", concluiu o GPIAAF.
No relatório publicado nesta segunda-feira, este organismo explica que o ex-professor da Faculdade de Letras e a esposa caminharam "um atrás do outro" junto aos carris e, assim, percorreram "aproximadamente 435 metros". Pelas 21.48 horas, quando ainda estavam a "cerca de 350 metros da extremidade dos cais de desembarque da estação", um comboio Alfa Pendular "passou no local, provocando a queda da passageira, que ficou com ferimentos ligeiros, e colhendo o passageiro, causando-lhe ferimentos fatais".
"O maquinista do comboio não se apercebeu da presença das pessoas no local, nem percecionou qualquer anormalidade relacionada com a colhida", lê-se no documento.
Passividade da CP
O mesmo documento refere que a informação recolhida pelo GPIAAF permitiu concluir que o acidente decorreu devido a "uma sequência de erros dos passageiros, que os levou a sair do comboio quando este não se encontrava na estação e a decidir caminhar a pé pela via férrea, não percecionando adequadamente o risco que a situação de facto tinha".
Porém, a "investigação [também] constatou que o sistema técnico existente nas carruagens utilizadas nos comboios intercidades não impede a livre abertura das portas com a velocidade do comboio abaixo dos cinco quilómetros/hora". E que "as barreiras brandas existentes, nomeadamente procedimentos de aviso em algumas situações e o comportamento dos passageiros, têm-se revelado pouco eficazes para mitigar o risco deste tipo de eventos".
"A investigação identificou igualmente que, apesar de uma frequência significativa de eventos relacionados com a abertura das portas em locais indevidos, a empresa de transporte ferroviário não havia procedido à análise desse risco para o caso das portas de abertura manual", resume o GPIAAF.
Problema sem solução
Aliás, segundo os técnicos, só "como consequência do acidente" que vitimou Sebastião Tavares de Pinho é que "a Autoridade Nacional de Segurança Ferroviária e a empresa ferroviária tomaram diversas medidas relacionadas com a implementação de uma solução tecnológica nas portas existentes ou a sua substituição por portas de outro tipo, que controle o risco a um nível aceitável".
A solução adotada não resolve, contudo, todos os problemas. "Mais do que preconizar uma solução tecnológica específica, importa que a empresa ferroviária analise de um modo formal e estruturado os riscos decorrentes da abertura indevida das portas do material circulante com portas de acionamento manual, tanto mais que existem carruagens com portas manuais de outros tipos, a fim de então definir cabalmente as medidas de controlo mais adequadas à sua redução a um nível aceitável, tendo em conta a realidade da operação ferroviária nacional e o histórico de eventos", salienta o relatório.