Há redes internacionais a comprar crianças por valores entre os mil e os dois mil euros para, em seguida, as forçar a angariar um mínimo de 30 euros diários com a mendicidade. Mas também há portugueses a aproveitarem-se das debilidades de quem padece de doenças mentais e físicas para viver à custa de quem passa os dias a pedir à porta de igrejas e supermercados. Num e noutro caso, há uma certeza: quanto maior a degradação da vítima maior é o lucro.
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Ao JN, o inspetor-chefe da PJ que lidera a brigada da Diretoria do Porto que investiga o tráfico de seres humanos, Sebastião Sousa, defende que "a mendicidade forçada é um fenómeno que não é novo", mas ao qual "a globalização veio trazer novos contornos e novas oportunidades". "As redes internacionais, sobretudo provenientes da Roménia e Bulgária, aproveitaram a integração destes países na União Europeia para circularem livremente pelo Espaço Schengen. Estas redes tiveram o seu apogeu até 2018 e recuaram com a pandemia", explica.
Laços reforçados com casamento
A experiência de Sebastião Sousa leva-o a afirmar que "as redes organizadas, constituídas por clãs familiares com laços consanguíneos, perceberam que era mais fácil obter esmola se os pedintes fossem crianças e adolescentes grávidas ou com bebés de colo". E, no seguimento de uma "estratégia que apela ao sentimento", adquirem crianças para as pôr a mendigar.
"Estas crianças são compradas, no país de origem, por valores entre os mil e os dois mil euros, é-lhes imposto um casamento com um membro da família com uma idade aproximada e forçadas a engravidar", descreve. "As vítimas são angariadas pela sua vulnerabilidade. São crianças, pessoas que padecem de algum tipo de psicopatologia ou debilidade cognitiva, consumidores de droga ou sem-abrigo, que ficam reféns da rede", confirma Marta Pereira.
Mínimo de 30 euros por dia
A coordenadora nacional das respostas de assistência às vítimas de tráfico de seres humanos e o inspetor-chefe da PJ explicam que estas pessoas são deixadas de manhã junto a supermercados, igrejas, estações de transportes públicos, feiras ou locais turísticos e recolhidas ao final da tarde. Entre os dois momentos são forçadas a mendigar até atingir um valor mínimo. "Como em qualquer modelo de negócio, são impostos objetivos mínimos. Normalmente, as vítimas têm de entregar, pelo menos, 30 euros por dia à rede. Quando não conseguem são castigadas fisicamente, privadas da alimentação e postas a dormir fora de casa", descreve Sebastião Sousa, que garante que, apesar dos maus-tratos, quase ninguém foge. "O clima de intimidação, coação e medo associado ao desconhecimento da língua, do país e à falta de uma rede de apoio é totalmente dissuasor da fuga", justifica.
"Estas pessoas são muito maltratadas e quanto mais degradadas, física e psicologicamente, estiveram mais rentáveis se tornam para o explorador", frisa Marta Pereira. A mesma lógica, refere Sebastião Sousa, aplica-se a portugueses explorados por portugueses. "As vítimas são oriundas de famílias disfuncionais, com baixa autoestima e sem qualquer rede de apoio. Há casos em que a família da vítima nem sequer participa o seu desaparecimento às autoridades policiais", afirma.
Obrigadas a entregar o dinheiro obtido com a mendicidade, este tipo de vítimas é ainda desapossada dos seus bens e do montante que recebam de reforma por invalidez ou rendimento social de inserção. "Quando vão levantar o dinheiro estas vítimas são escoltadas pelos exploradores", revela o inspetor-chefe.
Casos
Porto - Cego sequestrado três vezes
"Tó Quim" ficou cego aos 19 anos, mas esta não seria a única desgraça da sua vida. No ano de 2000, foi sequestrado numa rua da Figueira da Foz, onde residia com a irmã, introduzido à força numa carrinha e transportado para o Porto. O grupo que o sequestrou forçou-o a mendigar até que, em 2006, foi libertado pela PJ. Meio ano depois foi sequestrado pela segunda vez, por elementos do mesmo grupo e levado para a zona do Freixo, também no Porto. Além de pontapeado, esbofeteado e queimado com isqueiro e pontas de cigarro era obrigado a pedir e angariava entre 30 a 250 euros por dia. O dinheiro era entregue ao clã que, à noite, o mantinha trancado numa velha carrinha. Foi sequestrado uma terceira vez.
Vale do Sousa - Forçada a sexo a três
Uma mulher, com 28 anos mas com uma idade mental inferior a 12, foi forçada por um casal a pedir à porta de supermercados, ao longo de seis meses. Durante este período, a vítima também foi convencida a manter relações sexuais com os agressores. O caso foi sinalizado pela PJ em fevereiro deste ano, no Vale do Sousa, onde a cartomante com quem a mulher passou a viver garantia-lhe que só com a prática destes atos poderia melhorar a vida. Todas as manhãs, a jovem era deixada junto àquelas superfícies comerciais, somente com uma sande e uma peça de fruta para se alimentar até ao final do dia, altura em que era recolhida. Nesse momento, tinha de entregar os 30 a 50 euros que reunia nos peditórios. A vítima conheceu os agressores numa consulta médica.