Com apenas 10 anos, uma menina romena foi vendida duas vezes pela própria mãe. Primeiro, para a Irlanda e depois para Portugal. Por cá, foi obrigada a casar, violada, espancada e transformada em escrava doméstica. Sempre sob ameaça de mais e mais agressões, também era forçada a roubar e a mendigar à porta de supermercados e chegou a ser detida. Mesmo assim, só ao fim de cinco anos foi resgatada à família que a maltratava, passando a ser oficialmente mais uma vítima de mendicidade forçada, crime dominado por cifras negras e ao qual quase todos fecham os olhos.
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Entre 2019 e 2021, contabilizou o Observatório de Tráfico de Seres Humanos, foram "sinalizadas 12 presumíveis vítimas de mendicidade forçada". Valor que a coordenadora nacional das respostas de assistência às vítimas de tráfico de seres humanos, Marta Pereira, "considera muito reduzido". "É um número que que não retrata, nem de perto nem de longe, a realidade. É muito difícil identificarmos vítimas de mendicidade forçada. Passamos por estas pessoas diariamente, mas não conseguimos ver o problema. Muitas vezes até não queremos ver. Mas estas situações não fazem parte da tradição ou da cultura de um povo. São crime", frisa.
Já na Diretoria do Porto da Polícia Judiciária (PJ) foram abertos, entre 2014 e 2021, nove inquéritos sobre mendicidade forçada e o inspetor-chefe Sebastião Sousa admite que estes não exemplificam uma realidade que o preocupa. "Há muitas cifras negras, porque a mendicidade forçada é um crime muito difícil de investigar. As vítimas não têm consciência que são vítimas e não colaboram com as autoridades. Por outro lado, como são forçadas a casar e a engravidar, vão reforçando os laços familiares com os criminosos, o que dificulta a denúncia", refere. O inspetor-chefe da PJ avança que até há casos de jovens resgatadas que, nas semanas seguintes, voltam para junto de quem as maltrata só para estarem próximas dos filhos.
Neste contexto, Marta Pereira exige que os episódios de mendicidade, especialmente os que envolvem crianças, sejam imediatamente sinalizados às autoridades competentes. Só com denúncias, defende, mais vítimas poderão ser salvas de um mundo que as próprias negam existir. "Quase sempre estas vítimas estão doutrinadas para mentir e para negar o que estão a sofrer", explica Marta Pereira.
"A minha mãe conhecia um casal e simplesmente vendeu-me para ganhar algum dinheiro. Quando saí de casa só me disse que eu ia ter uma vida boa"
Casamento forçado para ter sexo com menor
Era o caso de "Sandra", nome que substitui o de batismo que, tal como o seu passado, quer ver morto e enterrado. A todos garantia que era filha de um casal romeno a viver no Norte do país, entre 2009 e 2014, quando a história era muito diferente. O medo de ser espancada ou de ver os verdadeiros irmãos assassinados levava-a a mentir.
Ao JN e de viva voz, "Sandra" recorda que foi vendida pela própria mãe a um compatriota que vivia na Irlanda. "Tinha dez anos, não sabia o que me estava a acontecer e sofri um trauma grande", conta. Tão grande que ficou doente, entrou em coma e foi devolvida à progenitora, por ser mais despesa do que fonte de rendimento.
Recuperada do choque, a menina seria vendida, uma segunda vez. "A minha mãe conhecia um casal e simplesmente vendeu-me para ganhar algum dinheiro. Quando saí de casa só me disse que eu ia ter uma vida boa", diz.
Acompanhada do seu novo "dono", "Sandra" viajou de autocarro para Portugal, país do qual nunca tinha ouvido falar e, dias depois de chegar a uma casa no Grande Porto, foi obrigada a casar com o filho do casal que a tinha comprado. "Tinha apenas 12 anos e ele também era menor. A partir desse dia, passei a ser a escrava da casa", revela.
"Comprava um pão ou outra coisa barata para disfarçar, mas tinha de sair do supermercado com tudo o que desse para roubar"
Dia passado a pedir e a roubar
A menina que devia estar na escola e a brincar com os amigos, levantava-se às primeiras horas da manhã para cozinhar o pequeno-almoço para a família, vestir os membros mais novos do agregado e limpar a habitação. Com o cair da noite voltava às lides domésticas até ter que se deitar na mesma cama do "marido" para ser sexualmente abusada. Repetidamente.
Nesse entretanto, enquanto o sol brilhava, "Sandra" transformava-se numa vítima de mendicidade forçada. "Era levada para junto de supermercados para pedir dinheiro às pessoas que passavam. Ficava lá de manhã à noite, sempre vigiada por um elemento do casal para não fugir. Não tinha liberdade para estar uma hora sozinha", descreve.
E quando não estava a mendigar estava a roubar. "Comprava um pão ou outra coisa barata para disfarçar, mas tinha de sair do supermercado com tudo o que desse para roubar. A minha saia até tinha uns bolsos no interior para esconder os produtos", desvenda.
Agredida a toda a hora
Os proveitos da mendicidade forçada e dos roubos impostos eram entregues ao casal e frequentemente não chegavam para evitar os maus tratos. "Se recusasse pedir ou roubar era agredida com violência e eu fazia o que podia para que não me batessem. Mesmo assim, levava quando não conseguia cumprir com tudo o que me ordenavam", assegura.
Para "Sandra", a vida de pedinte, ladra e escrava transformou-se em "normalidade" e até a violência era encarada como mais uma rotina diária. Por isso, nada fez e nada disse no dia em que foi barbaramente agredida pelo "marido", que a fez embater com a cabeça na parede de um café repleto de clientes. Somente porque demorou um pouco mais de tempo a comprar um maço de tabaco.
Já a proprietária do estabelecimento filmou tudo, chamou a GNR e, cerca de cinco anos depois de ter chegado a Portugal, "Sandra" foi resgatada de uma vida de terror. Não pela mendicidade forçada, mas como vítima de violência doméstica. "Contei a história toda, fui levada para o posto e, mais tarde, acolhida num centro para menores. Mas sempre que saía à rua, algum membro da família estava lá para me ameaçar. Queriam que regressasse a casa e não contasse o que se passava à polícia", realça.
O medo persistiu até que "Sandra" foi, finalmente, classificada como vítima de mendicidade forçada e o caso começou a ser investigado pela PJ. Simultaneamente, a já adolescente de 17 anos foi transferida para um centro de acolhimento e proteção de mulheres vítimas de tráfico de seres humanos, gerido pela Associação para o Planeamento da Família.
O casal que a escravizou também foi detido e condenado a penas superiores a oito anos de prisão e ao pagamento de 75 mil euros de indemnização a "Sandra".
"Queria ser igual às outras pessoas e foi a primeira coisa que pedi quando cheguei ao centro"
Recupera do stresse pós-traumático com a ajuda dos técnicos
"Sandra" é hoje uma mulher feliz, mãe de uma menina e grávida de 33 semanas. Conseguiu refazer a vida ao lado de um novo companheiro, com quem comprou uma casa e solidificou um conceito de família que nunca tinha conhecido. Mas a recuperação de anos de abusos só foi possível com o apoio das estruturas que Portugal disponibiliza a vítimas de tráfico de seres humanos e mendicidade forçada.
Os cinco anos que viveu no centro de acolhimento e proteção permitiram-lhe que cortasse o cabelo e vestisse umas calças de ganga. "Queria ser igual às outras pessoas e foi a primeira coisa que pedi quando cheguei ao centro", explica. Permitiram ainda que a jovem frequentasse a escola, oportunidade extraordinária para quem não sabia ler nem escrever.
Estes passos foram sendo complementados com um acompanhamento psiquiátrico e psicológico, assim como sessões de terapia de grupo delineadas para combater um stresse pós-traumático que deixou marcas profundas. "Os piores momentos vinham de noite, quando me deitava na cama e vinha tudo à cabeça. Tinha medo de que voltasse a acontecer o mesmo e não conseguia dormir sem medicação", declara.
Casa de autonomização
Marta Pereira assegura que o "acompanhamento técnico existe 24 horas por dia" e é fundamental para que, ultrapassada a pior fase, as vítimas possam ser transferidas para uma estrutura de autonomização. Trata-se de uma casa, com três quartos, onde vivem outras tantas pessoas à procura da independência total. "A decisão de abandonar as estruturas de autonomização é tomada pelas vítimas e técnicos, em conjunto", salienta a coordenadora nacional.
"Sandra" esteve numa destas casas durante um ano, tempo suficiente para fazer formação profissional, encontrar emprego e atingir a estabilidade emocional. "É possível sermos felizes mesmo com um passado difícil. Nunca mais tive contacto com a minha mãe e estou a constituir a minha própria família", resume.
Detenção por furto não a salvou do cativeiro
Durante um dos muitos furtos no supermercado, "Sandra" foi apanhada e levada para o posto da GNR sob detenção. Situação que não a salvou do cativeiro. "Menti ao dizer que era filha do casal com quem vivia, mas revelei aos guardas que era obrigada a pedir e a roubar", lembra.
Os alegados pais foram chamados, mas, confrontados com o crime, negaram tudo às autoridades. "Eles foram ao posto da GNR e garantiram que eram os meus verdadeiros pais e que eu não era forçada a mendigar. Mesmo em frente aos guardas também ameaçaram matar-me e matar os meus irmãos que viviam na Roménia se eu os denunciasse. Falaram em romeno e os guardas não perceberam nada do que foi dito", recorda.
Com medo, "Sandra" resignou-se, desistiu da denúncia e regressou a uma vida de terror. A GNR continuou a vê-la a mendigar à porta de supermercados, mas só meses mais tarde a jovem seria resgatada pelos dois militares que responderam à queixa sobre a violenta agressão.
Forçada a entregar bebé que teve com 13 anos
Na sequência das repetidas relações sexuais que era obrigada a manter com o jovem com quem foi forçada a casar, "Sandra" engravidou quando tinha 13 anos. Ao longo da gestação nunca foi observada por um médico e só no dia do parto é que lhe foi permitido deslocar-se ao hospital.
Para não levantar suspeitas, nunca revelou a sua verdadeira identificação, dizendo, a médicos e enfermeiros, ter o nome da filha do casal que a escravizava e que vivia em Espanha. Os serviços hospitalares acreditaram em tudo, tanto mais que a alegada mãe da menina grávida contou-lhes que o bebé era fruto de uma relação desfeita com um rapaz que permanecia na Roménia.
Apesar de ser tudo inventado, o mesmo motivo foi apresentado para justificar a entrega para adoção do recém-nascido.
"Sandra" nunca mais viu a filha e ainda foi obrigada a colocar um implante anticoncecional para continuar a ser uma escrava sexual.