Daniel Litvak: "Ninguém vai ver um judeu da nossa comunidade associado a ilícitos e malas de dinheiro"
Daniel Litvak, rabino da Comunidade Judaica do Porto, mostra confiança em relação às investigações sobre a naturalização do russo Roman Abramovich.
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Desde 2015, foram feitos 86 mil pedidos de nacionalidade portuguesa ao abrigo da lei que a concede a descendentes dos judeus sefarditas expulsos de Portugal durante a Inquisição (séculos XVI a XIX). Já terão sido atribuídos pelo Estado português cerca de 50 mil pedidos. E a maioria foi tratada pela Comunidade Judaica do Porto. O caso mais polémico foi, até agora, o do milionário russo Roman Abramovich, dono do Chelsea. O Ministério Público instaurou já uma investigação criminal, o Instituto dos Registos e Notariado (IRN) abriu um inquérito interno. Ao JN, o rabino da comunidade, Daniel Litvak, agradece os inquéritos e queixa-se das suspeitas levantadas, falando de perseguição. "Foi apenas lama que nos lançaram. Outra vez."
Correm inquéritos sobre a nacionalidade portuguesa de Roman Abramovich. O que tem a dizer sobre o assunto?
O Estado tinha o dever de abrir tais inquéritos, porque entidades oficiais e não oficiais foram associadas a subornos, malas de dinheiro, truques e muito mau uso da lei. O resultado dos inquéritos vai expor esses mitos antissemitas. Os mesmos que nos perseguem há séculos. Só temos pena dos funcionários da Conservatória. Nós já estamos habituados. A nossa comunidade é filha do Holocausto e das expulsões dos países árabes. Ninguém vai ter o prazer de ver um judeu da nossa comunidade associado a ilícitos e malas de dinheiro. Foi apenas lama que nos lançaram. Outra vez.
Quais são os critérios de certificação da Comunidade Judaica do Porto?
Conforme acordado com o Ministério da Justiça em 2015, a Comunidade do Porto certifica os judeus descendentes de judeus sefarditas de comunidades de origem portuguesa, valendo-se do conhecimento que possui do mundo judaico e das suas instituições e decidindo com base na tradição judaica, nos apelidos de família, no idioma familiar, nas latitudes, na memória familiar, nos certificados emitidos pelas comunidades judaicas a que os requerentes pertencem, nos documentos de Estados e noutros elementos.
Jamais a comunidade judaica do Porto iria guardar para si um tal processo [de Abramovich], ou certificar o caso em segredo, sem que o Estado estivesse devidamente informado sobre todos os passos.
Como foi no caso Abramovich?
Não posso falar de casos concretos. Os dados pessoais devem ser preservados, sob pena de severas penalidades.
O Estado português possui o processo de Abramovich?
Jamais a comunidade judaica do Porto iria guardar para si um tal processo, ou certificar o caso em segredo, sem que o Estado estivesse devidamente informado sobre todos os passos. O caso cumpre a lei e está caucionado por altas instâncias judaicas reconhecidas pelo Grão-Rabinato de Israel. Não nos interessam os nomes das pessoas, mas a sua ligação a Portugal. Em 2018, um ministro de um dos mais importantes países do mundo pediu a nossa certificação. Foi recusada porque não era devida.
Por que nunca noticiaram que Abramovich tinha solicitado a nacionalidade portuguesa?
Não tínhamos direito de o fazer. Somos apenas parceiros de um Estado. Acreditávamos que o caso em concreto era motivo de orgulho para a comunidade judaica portuguesa e para Portugal. São membros da Comunidade Judaica do Porto grandes beneméritos portugueses, de todo o mundo - Hong Kong, Nova Iorque, Moscovo e Jerusalém -, à sombra da mais antiga organização judaica, com assento na ONU: a B'nai B'rith International. Também esta organização de defesa de direitos humanos foi destratada em Portugal, associada a uma espécie de esquema de venda da nacionalidade e acusada de ser semelhante à maçonaria.
[Abramovich] Não é alguém que tenha feito uma doação a uma comunidade que já tem tudo, como a nossa. É um órfão que conseguiu vencer na vida, a ponto de ajudar a diáspora judaica no mundo inteiro já há mais de 20 anos.
Mas concorda que o caso era politicamente sensível?
Essa pergunta não deve ser feita a uma comunidade judaica. Entre os judeus, o hebraico, o inglês e o russo são os idiomas mais falados. No nosso Museu do Holocausto temos exposições oferecidas pelos Museus de Washington e de Moscovo. Recebemos visitas amigáveis dos embaixadores de potências em choque. Eu diria, como Portugal e a sua sapiente diplomacia, que não temos guerras frias ou quentes com ninguém. Temos membros de 30 nações.
O que representa para vós Roman Abramovich?
Nachman ben Aharon é um benemérito. Não é alguém que tenha feito uma doação a uma comunidade que já tem tudo, como a nossa. É um órfão que conseguiu vencer na vida, a ponto de ajudar a diáspora judaica no mundo inteiro já há mais de 20 anos. Muitos portugueses manifestaram à nossa comunidade o quanto gostam de Abramovich. Houve até quem pedisse o telefone dele, para o convidar a visitar as suas casas. Creio que um dia ele aceitará um convite destes, simples e puro, se entretanto não desistir de Portugal.
Que balanço faz dos anos decorridos em matéria de lei dos sefarditas?
Passaram quase sete anos. A comunidade judaica nacional cresceu mil por cento e muitas famílias preparam ainda a sua viagem. Vemos sinagogas cheias, museus, a escola judaica portuguesa, o maior Chabad Center da Europa, jornais judaicos, restaurantes kosher e muitos eventos internacionais. O Estado talvez tenha atribuído até hoje cerca de 50 mil nacionalidades para judeus de origem sefardita. Isso perfaz cerca de cinco por cento do universo de candidatos possíveis, que calculamos seja um total de um milhão, contando apenas com as famílias tradicionais das comunidades sefarditas do Norte de África e do antigo Império Otomano.
Porquê o envolvimento de comunidades judaicas no processo de atribuição da nacionalidade?
No ano de 2015, o Governo do PSD e do CDS entendeu que ninguém em Portugal teria competências para fazer a certificação de sefardismo dos requerentes, salvo as comunidades judaicas. Optou assim, por um lado, pelas comunidades judaicas radicadas em Portugal; por outro lado, pelas comunidades de origem dos requerentes. Neste último caso, a Conservatória faria a apreciação de todo o processo e, em caso de dúvida, a lei aconselha que consulte as comunidades judaicas portuguesas. Muitas vezes isto se verificou.
A Conservatória tem contactos regulares com as comunidades de Porto e Lisboa?
Houve sempre uma cooperação em tempo real entre a Conservatória e as comunidades judaicas de Lisboa e Porto. Durante todos estes anos, estivemos sempre em contacto permanente com a Conservatória. Todos os meses enviamos processos integrais completos para as diversas Conservatórias do País. Há inúmeros casos de dúvidas, vários por dia, em regra relacionados com questões menores, mas complexas, como a grafia de apelidos hebraicos, escritos diferentemente de país para país, que sempre procuramos esclarecer com o envio integral dos processos dos requerentes.
O certificado de sefardismo não tem demasiado valor num processo de nacionalidade?
A Conservatória analisa um vasto conjunto de documentos que inclui não apenas um certificado de sefardismo, mas múltiplos outros documentos e até provas de sefardismo. Pelo que sei, a análise global da Conservatória termina com a elaboração de um parecer, que pode ir no sentido positivo ou negativo. O Governo pode conceder ou não a nacionalidade a cada requerente. É um poder discricionário. Em 2013, quando duas propostas semelhantes foram apresentadas no Parlamento, sobrepôs-se a do Partido Socialista, que dizia que "O Governo pode conceder", à do CDS, que dizia "O Governo concede".
Conhecemos a história de Portugal. Uma maldade, na linguagem comum, é "uma judiaria". Como combater uma desconfiança milenar, para mais num tempo onde todos desconfiam de todos?
Admite que a lei possa ser alterada em breve?
É uma opção legislativa sempre possível. Não a combateremos. Só combatemos ofensas, não opções legislativas do poder soberano. Nunca exigimos a lei, muito menos exigimos ser parte dela. Em 2013 e 2014, pedimos ao Governo para que fosse constituída uma comissão internacional para a certificação de sefarditas. Não queríamos ser nós a fazê-lo, para evitarmos sermos alvos de críticas.
Críticas porquê?
Conhecemos a história de Portugal. Uma maldade, na linguagem comum, é "uma judiaria". Como combater uma desconfiança milenar, para mais num tempo onde todos desconfiam de todos? Nunca poderíamos satisfazer quantos nos exigissem provas absolutas de que uma família marroquina ou otomana saiu outrora de Évora ou Penafiel. Como fazer prova absoluta de que o antigo Presidente da República Dr. Jorge Sampaio era originário de Portugal? Só a tradição judaica o comprova, ancorada naturalmente em certificações rabínicas de origem, apelidos, latitudes e outros elementos relevantes para quem conhece o mundo judaico. Isto nunca satisfaria os críticos, que não sabem sequer o que é um judeu.
Mas a lei portuguesa exige uma tradição de pertença.
Exige uma tradição de pertença, não a Portugal, mas sim a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, em Tânger, Tunis, Cairo, Istambul, Antuérpia, etc. Este passo da lei - a tradição de pertença - sempre me surpreendeu muito positivamente, vindo da parte de legisladores não-judeus. No seio do povo judeu - um povo de migrantes forçados -, a prova da qualidade de cada um é feita de acordo com a tradição judaica. É assim que funciona toda a migração para Israel. A tradição judaica é a grande defensora das sinagogas de todo o mundo, de Israel e de Portugal.
Temos pouco interesse em continuar a trabalhar nos mesmos moldes de há sete anos, com a América Latina a chamar-nos racistas, e com os denegridores da lei a dizerem que certificamos uma enormidade de casos.
O regulamento da nacionalidade será alterado em breve. Sabe em que medida?
Desconhecemos. Sugerimos uma ligação um pouco mais efetiva dos requerentes a Portugal, para obstar à publicidade ilícita, bem como uma plataforma eletrónica para trabalharmos em conjunto com a Conservatória. Não abdicaremos desta última. Temos pouco interesse em continuar a trabalhar nos mesmos moldes de há sete anos, com a América Latina a chamar-nos racistas, e com os denegridores da lei a dizerem que certificamos uma enormidade de casos... que recordo é cerca de 5% do universo potencial de candidatos no mundo sefardita português.
Como analisar uma árvore genealógica?
Da forma como entendemos a lei, com aceitação desde sempre por parte do Ministério da Justiça, a ligação ao mundo judaico tem de ser atual e deve envolver uma tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, que a lei situa corretamente em diversas regiões do globo. Isso significa que dispensamos as genealogias de muitas gerações, que nunca conseguiríamos comprovar ponto por ponto, por mais semanas ou meses que passassem. Para nós, as genealogias são desenhos. Os nossos colegas da comunidade de Lisboa atuam diferentemente, têm outros critérios e trabalham com genealogistas e historiadores. Nós não o fazemos. Temos uma comissão rabínica, preparada para avaliar o mundo judaico, não o mundo não judaico. Por isso, nos últimos anos, a nossa comunidade foi a que mais cresceu na Península Ibérica. Isto é um fato, não uma questão de opinião.