A pandemia "exacerbou as desigualdades", a resposta do Governo evidenciou "lacunas nos direitos à saúde e à habitação" e nem a libertação de dois mil reclusos por razões humanitárias livra Portugal das críticas da Amnistia Internacional, no relatório sobre a situação dos direitos humanos em 2020, que destaca a morte violenta de um cidadão ucraniano à guarda do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
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O relatório "O Estado dos Direitos Humanos no Mundo", que é publicado esta quarta-feira e enfatiza os efeitos da pandemia no agravamento das violações dos direitos humanos em muitos dos 149 países analisados, dedica parte do capítulo a Portugal e aos efeitos da crise pandémica e aos dois períodos de estado de emergência (entre 18 de março e 2 de maio e entre 9 de novembro e o final do ano).
O documento diz que foram limitadas as liberdades de movimentos e de reunião, mas a diretora de investigação e advocacia da organização no país, Maria Lapa, notou ao JN que no país "não há razões para considerar que houve excessos ou abusos de poder, como na Hungria, onde o Governo aproveitou para introduzir medidas repressivas, como uma pena de cinco anos de prisão para quem difundir informações que considera falsas".
A Amnistia Internacional (AI) menciona ainda agravamento de desigualdades e lacunas do Governo na resposta a problemas de saúde e de habitação, assim como discriminação. "Grupos que já estavam à margem, como mulheres, imigrantes, minorias étnicas e idosos sofreram mais do que os outros", comentou Maria Lapa.
O documento refere a libertação de mais de dois mil reclusos para limitar o contágio de covid nas prisões. Mas "alguns ficaram em situação de sem-abrigo", salienta a dirigente. A libertação deveria ter sido acompanhada de garantias de habitação, evidencia.
O relatório regista a medida do Governo de suspender exceções de hipotecas e despejos, mas vinca que "imediatamente antes de a suspensão entrar em vigor, a Câmara Municipal de Lisboa despejou cerca de 70 pessoas que tinham ocupado habitações sociais por falta de alternativas".
Crimes de ódio
A morte do cidadão ucraniano Llhor Homeniuk nas instalações do SEF no Aeroporto de Lisboa, pela qual três inspetores estão acusados de homicídio qualificado e cujo julgamento está na fase de audição de testemunhas, é também destacada no relatório.
A organização salienta que o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas expressou preocupação quanto aos relatos de crianças não acompanhadas detidas em aeroportos. O CDH também manifestou preocupação com a "discriminação racial continuada contra comunidades ciganas e pessoas de ascendência africana nas áreas da educação, emprego e habitação, e em relação a discursos e crimes de ódio".
O documento sublinha a realização do primeiro julgamento em Portugal de uma mulher acusada de sujeitar, em 2019, uma menina (na época com um ano e meio) a mutilação genital feminina. Nesse ano houve em Portugal 129 casos, segundo o projeto "Práticas Saudáveis - Fim à Mutilação Genital".
Mundo
Situação piorou para refugiados e minorias
"A resposta à pandemia global foi prejudicada por líderes que exploraram impiedosamente a crise e fizeram da covid-19 uma arma para novos ataques aos direitos humanos", considera a Amnistia Internacional (AI).
Alertando que a crise sanitária agravou a já precária situação dos refugiados, requerentes de asilo e migrantes em muitos países, aprisionando alguns em campos com condições degradantes, o relatório "O Estado dos Direitos Humanos no Mundo", mostra como, em 2020, em muitos dos 149 países analisados, a covid-19 tornou a vida de milhões de pessoas ainda pior.
"Pessoas que já são marginalizadas são quem mais sente o peso devastador da pandemia, em resultados de décadas de decisões discriminatórias e de políticas de austeridade e escolhas erradas", e a covid "expôs e aprofundou brutalmente as desigualdades dentro dos países e entre eles".
As desigualdades deixaram minorias étnicas, refugiados, pessoas com deficiências, idosos, mulheres e crianças desproporcionadamente afetados de forma negativa pela pandemia. Também os trabalhadores informais, que perderam rendimentos com o fecho da economia e não têm acesso a proteção social são vítimas da pandemia.
O relatório salienta a falta de solidariedade entre países, a começar pelos mais ricos e com maior acesso a vacinas, que, como nos Estados Unidos sob a administração Trump, procuraram garantir a compra de todas as doses. Mais de 90 países estabeleceram restrições à exportação de artigos e equipamentos médicos, equipamentos de proteção individual e alimentos.
O documento salienta que muitos dirigentes aproveitaram o pretexto para recrudescer as perseguições, inclusivamente a profissionais de saúde que denunciavam a falta de condições. A escassez de equipamentos de proteção individual é apontada em 42 dos 149 países analisados.
"Um dos padrões principais foi o de as autoridades aprovarem legislação criminalizando críticas", acentua, apontando o exemplo da Hungria, onde o governo de Viktor Orbán introduziu no Código Penal penas de prisão até cinco anos pela divulgação de informações "falsas" sobre a covid.
Também nas petromonarquias do Golfo, as autoridades usaram a pandemia como pretexto para continuar a suprimir a liberdade de expressão, acusando pessoas de difundirem informações falsas, acrescenta a Amnistia, que também acusa a China de censurar e perseguir profissionais de saúde e jornalistas por tentarem divulgar informação crucial.
Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte vangloriou-se de ter dado ordens à Polícia para matar a iro quem protestasse ou causasse problemas durante as medidas de quarentena. Há relatos de dezenas de mortos em manifestações, em vários países africanos, contra as medidas ou por procurarem comida fora de casa durante o confinamento. O número de pessoas que sofre de insegurança alimentar subiu para 270 milhões.
A violência policial tornou-se uma constante ainda maior no Brasil. Só no primeiro semestre, 3181 pessoas, mais de 79% das quais eram negras, morreram sob forgo de armas de agentes da autoridade. O Brasil foi o país com maior número de mortos pela covid-19 - mais de 195 mil - devido às políticas erradas do Governo federal, em permanente confronto com os governos estaduais, e onde os pobres, os indígenas e os quilombolas (descendentes de escravos libertos mas sem terras) mais sofreram.
Nos Estados Unidos, agravaram-se as manifestações racistas e a violência supremacista, incluindo por grupos de extrema-direita apoiantes do então Presidente Donald Trump, bem como por polícias, as perseguições a imigrantes, o uso abusivo da força e das armas pela Polícia (mais de um milhar de mortos). Com a pandemia, tornou-se mais evidente a falta de acesso de grande parte da população a cuidados de saúde.
Os conflitos armados, a violência de género, apesar de progressos em vários países, mas que o confinamento fez recrudescer, a estigmatização e a perseguição por causa das orientações sexuais são outros tópicos do relatório.
Entre os países em que a violência está dramaticamente na ordem do dia, destaca-se Moçambique. Na região de Cabo Delgado, o grupo armado Al Shabaah já fez mais de 2500 mortos, incluindo muitos civis, contra os quais perpetrou muitas atrocidades, meio milhão de deslocados e 700 mil pessoas a necessitar de apoio humanitário. Falta alojamento, alimentos, água e cuidados de saúde.
Os peritos da Amnistia têm dificuldade em caracterizar o grupo, responsável por massacres e pelo terror e que se proclamou seguidor do autoproclamado Estado Islâmico, mas denuncia a falta de impunidade com que atua.
A organização também avisa que as autoridades têm cometido violações de direitos humanos. Maria Lapa, diretora de investigação e advocacia da secção portuguesa da AI, fez notar ao JN que há crimes dos dois lados que é necessário investigar. O relatório da AI refere crimes contra presumíveis combatentes, a detenção arbitrária e o desaparecimento forçado de líderes comunitários e de jornalistas.
Entrevista
2020 foi um ano totalmente atípico
Que alterações destaca no relatório de 2020?
Foi um ano totalmente atípico. Com a pandemia, agravaram-se as desigualdades, em consequência de décadas de políticas de austeridade e de discriminação, de violação do direito à vida e à saúde. Há um aumento da violência de género. Líderes políticos aproveitaram para aumentar a repressão da dissidência. Os interesses nacionais sobrepuseram-se à cooperação internacional. Os estados e a instituições internacionais falharam.
Que principais direitos humanos foram violados?
O direito à saúde, à vida e a proteção social. Verificámos como o direito à saúde é tão importante e que muitas pessoas não puderam usufruir dele. Profissionais de saúde foram perseguidos e presos por reclamarem melhores condições.
A pandemia continua a influenciar o ano de 2021?
Não vai desaparecer tão cedo. Há muitos grupos em situação muito difícil, que ficaram sem rendimentos, desempregadas, sem-abrigo.
Persistem conflitos regionais...
O continente africano é particularmente afetado. A Nigéria já vai em dez anos, na Etiópia rebentou na região do Tigré. Os conflitos trazem violações do direito internacional, agravados pelas alterações climáticas e condições sanitárias deploráveis. É necessário dar prioridade à investigação imparcial dos crimes. A situação no Iémen é escandalosa.