Médicos, enfermeiros e famílias de internados no Hospital Conde Ferreira, no Porto, relataram horrores. Gestores, delegada de Saúde e pessoal médico negaram. MP arquivou duas vezes.
Corpo do artigo
Incluindo médicos, enfermeiros e familiares de doentes, são 37 as testemunhas que confirmaram um autêntico clima de terror no Hospital Conde Ferreira, no Porto. Mas outras 32 pessoas, entre as quais o provedor e mesários da Santa Casa da Misericórdia do Porto, dona da unidade de saúde mental, a delegada de Saúde do Porto Oriental e elementos do corpo clínico, negaram a existência de maus-tratos e a extrema falta de condições. Perante a disparidade de versões, a diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) Regional do Porto, Branca Lima, arquivou, pela segunda vez, o inquérito que investigava crimes como homicídio por negligência, propagação de doença ou exposição e abandono.
Para a magistrada, a prova recolhida ao longo de cinco anos não era suficiente para justificar condenações no final do julgamento. "Entendo, forçosamente, que é de concluir que não resultam indícios suficientes para ser deduzida acusação contra qualquer um dos arguidos constituídos, por qualquer daqueles crimes", escreveu a procuradora da República num despacho recente.
Denúncia anónima
O caso foi espoletado com uma denúncia anónima, em 2017. A carta enviada à Procuradoria-Geral da República descrevia uma casa de horrores, onde doentes mentais morriam por falta de assistência médica. Outros teriam sucumbido à fome, devido à má qualidade e, sobretudo, devido à escassez da comida servida.
A queixa denunciava, igualmente, falta de material médico para tratar utentes, obrigados a tomar banho em condições indignas e a dormir em colchões com resguardos rotos e impregnados de urina. O cheiro era insuportável numas instalações degradadas, com pedaços de teto a cair, janelas que deixavam passar o frio e a humidade e com infestações de baratas e ratos, acusava o denunciante.
Apesar do denunciado, em julho do ano passado, o Ministério Público (MP) arquivou o inquérito.
MP não encontrou provas
O caso não ficou por ali, pois, numa decisão pouco comum no MP, a diretora do DIAP reverteu o arquivamento. "Afigura-se-nos que não foram realizadas diligências essenciais para o cabal apuramento dos factos", criticou. Branca Lima reabriu o inquérito para esclarecer as causas de mortes de utentes - só em 2016 faleceram 33 -, uma alegada agressão a um doente, a falta crónica de pessoal e o eventual racionamento dos produtos utilizados no tratamento médico. Mas, um ano depois, chegou à mesma conclusão da sua subordinada.
"Foi produzida prova testemunhal corroborando que todos os doentes com escaras eram adequadamente tratados e nada faltava para o efeito", exemplificou Branca Lima. A diretora do DIAP frisou que também não ficou provada "incúria" no contágio de sarna que afetou doentes e auxiliares e que um relatório da Delegação do Porto do Instituto Nacional de Medicina Legal "é inequívoco quanto à inexistência de incompatibilidades entre os registos clínicos e a causa da morte indicada nos respetivos certificados de óbito".
Provedor da Santa Casa negou acusações
Os responsáveis da Santa Casa da Misericórdia do Porto sempre negaram os maus-tratos. António Lopes Tavares, provedor durante o período a que se referiam os factos relatados na denúncia anónima, afirmou ao MP que nunca houve ordens para contenção de material médico. Lembrou, de igual modo, que a alimentação era confecionada por uma empresa privada e que uma inspeção da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, levada a cabo já depois de conhecida a queixa, não identificou problemas que justificassem a abertura de um inquérito. O então provedor salientou ainda que, quando o número de utentes baixou de 340 para 270, foram mantidos os mesmos enfermeiros e auxiliares, defendendo, assim, que havia recursos humanos suficientes para tratar dos doentes mentais. António Tavares só admitiu que recebeu do Estado umas instalações degradadas, mas garantiu que estava a ser realizado um investimento gradual na sua requalificação. Já o mesário e presidente do Conselho Executivo do hospital, Jorge Ferreira Dias, frisou que o subsídio do Governo não cobria as despesas do hospital, mas tal não significava que faltassem condições básicas aos utentes.
Pormenores
Buscas da PJ por duas vezes
A Polícia Judiciária foi duas vezes ao Hospital Conde Ferreira, em 2018 e 2019, tendo interrogado administradores do hospital, dirigentes da Santa Casa da Misericórdia, médicos, enfermeiros e familiares de doentes. Uns negaram o cenário dantesco, mas outros acrescentaram debilidades como o consumo de água impotável, quartos de isolamento só com um colchão no chão e um surto de sarna entre doentes e pessoal auxiliar.
Delapidação do património
A diretora do DIAP do Porto concluiu que não tinham sido realizadas "quaisquer diligências concretas" relativamente às contas da Santa Casa da Misericórdia, acusada de "delapidação do património" e de comprar quadros com dinheiro dos doentes. Porém, também aqui não foi feita prova para formalizar acusação.