Carros a dois metros do jardim e a dez dos quartos acabaram com o sossego da família. A compensação decretada pelos tribunais ronda os 86 mil euros.
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A construção de um troço da A32, entre São João da Madeira e os Carvalhos, deixou o logradouro de uma moradia a dois metros de distância da faixa de rodagem e os quartos a dez. O proprietário queixou-se de que a autoestrada provocou não só a desvalorização da residência, como também o fim do sossego que existia numa "zona tranquila, ladeada de árvores e muita privacidade". O Tribunal Administrativo de Aveiro, primeiro, e o Tribunal Central Administrativo do Norte, depois, deram-lhe razão e 11 anos depois condenaram a Auto-Estradas do Douro Litoral (AEDL) ao pagamento de uma indemnização superior a 86 mil euros.
Com uma vida profissional agitada em Vila Nova de Gaia, uma família optou, em 1997, por viver numa casa edificada no campo, longe do rebuliço típico das cidades. A calma desejada foi usufruída até outubro de 2010, quando a A32 foi aberta ao trânsito. Desde essa data, o "ruído decorrente do tráfego da A32" passou a ser "incomodativo e perturbador do sono dos moradores".
Antecipando o fim da tranquilidade, a família decidiu, ainda antes da inauguração da autoestrada, vender a residência e fixou em 700 mil euros o preço mínimo para concretizar o negócio. Porém, recebeu apenas uma proposta de compra e por menos de metade do valor pretendido.
Banco rejeita casa
No mesmo ano, os proprietários tentaram uma outra solução e procuraram obter um empréstimo bancário que lhes permitisse liquidar o crédito habitação em vigor e adquirir uma nova casa. Pretendiam dar como garantia a moradia de que se queriam livrar, mas um dos bancos rejeitou esta fiança, enquanto outro avaliou o imóvel em apenas 260 mil euros. Ambos alegaram que, "face à forte possibilidade da passagem da autoestrada junto ao imóvel, o mesmo irá sofrer uma desvalorização".
Após este veredicto, a família recorreu ao Tribunal Administrativo de Aveiro, que deu como provado que a casa, avaliada em 661 995 euros aquando da sua construção, sofreu uma desvalorização de 13% com a passagem de uma autoestrada a uma curta distância. "Não poderá deixar de se concluir que o prejuízo invocado - a desvalorização do imóvel - é especial, porque atinge especialmente o autor, que viu a sua habitação perder valor em consequência da construção e funcionamento do lanço de autoestrada. Desvalorização de todo inesperada, que atinge especialmente o autor e o seu agregado familiar, não extensível à população em geral", entenderam os juízes. A indemnização decretada atingiu os 86 059 euros.
Prejuízo avultado
Insatisfeita com a sentença, a AEDL recorreu para o Tribunal Central Administrativo do Norte, mas o resultado foi o mesmo.
"Não é normal impor a um particular um encargo, com a construção de uma autoestrada, de 86 059 euros, um encargo que vai muito além do rendimento médio anual de um cidadão português", alegou este tribunal superior.
AEDL queria pagar 50 mil euros por expropriação
Em setembro de 2019, o dono da residência perguntou à AEDL se havia possibilidade de evitar a expropriação do seu terreno. Mas, três meses depois, a concessionária informou-o que iria tomar posse administrativa do espaço, mediante o pagamento de uma indemnização. O proprietário recusou a hipótese e, numa reunião realizada em março de 2010, não aceitou receber 50 mil euros como forma de compensação pelo terreno que iria perder. Perante o impasse verificado, a expropriação do terreno não avançou e a autoestrada foi construída a dois metros de distância do jardim da residência. "É da responsabilidade da ora recorrente [a AEDL), a opção por alterar o projeto inicial, assumindo os custos de construção acrescidos, e de encontrar uma solução alternativa para evitar a expropriação da parcela de terreno do autor, dado não se ter alcançado um acordo com esse propósito", refere o Tribunal Central Administrativo do Norte no acórdão.
Pormenores
Viver sossegado
Para definir a indemnização, os tribunais valorizaram o facto do dono da casa ter decidido "construir o prédio com o intuito de viver no sossego e rodeado de natureza".
Crise do subprime
No recurso apresentado, a AEDL defendeu que os peritos que avaliaram a casa omitiram "a crise do subprime, que afetou o mercado imobiliário, em 2010".
Casa valorizada
A concessionária sustentou que a construção de uma autoestrada não tem impacto negativo, pois é "inegável a valorização de um prédio que é servido por uma via estruturante".