Quatro assassínios cometidos em menos de um mês num contexto familiar marcado por doenças mentais. Especialistas criticam falta de apoio e temem que o confinamento venha agravar a situação.
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Fátima Martinho, de 52 anos, empurrou o filho autista para o fundo de um poço, existente na aldeia de Cabanelas, Mirandela, provocando-lhe a morte. Tentou suicidar-se, mas foi impedida por um familiar. Na Maia, Adélia Viana, de 72 anos, matou a filha com um cocktail de medicamentos dissimulado numa bebida, que também ingeriu até falecer. Sofia Tavares, 48 anos e também com problemas do foro mental, asfixiou a mãe de 82 anos, até à morte, em Vila Nova de Gaia.
E, em Grândola, Isabel Velez, 82 anos, foi abandonada à fome e à sede pelo filho, que apresentava um desequilíbrio emocional. Em menos de um mês, o país assistiu a quatro homicídios em contextos familiares marcados por doenças mentais. E os especialistas ouvidos pelo JN temem que mais casos possam aumentar os números desta lista negra, se não se olhar a sério para o problema.
Motivos? Sobretudo um confinamento imposto pela pandemia de covid-19, que agravou a saúde mental dos cidadãos de um país que pouco ou nada se preocupa com esta temática. Carlos Poiares, presidente da Associação para a Intervenção Juspsicológica, refere que esta sucessão de crimes evidencia, "por vezes, um efeito de mimetismo" que influencia "sujeitos mais vulneráveis".
Mas, para o também professor universitário, são "estes tempos de pandemia e de confinamento, logo de proximidade forçada, particularmente quando se partilham residências", que "podem levar a uma sintomatologia de aversão de uns pelos outros". "Estar confinado, quase detido, na própria habitação, como que amarrado ao outro e aos seus dramas, torna o cuidador mais vulnerável ao stress, quando não ao burnout, o que poderá explicar estes casos", defende.
Carlos Poiares explica que "o tempo de confinamento exigiu muito mais das pessoas, a todos os títulos, aumentando os riscos de adoecerem psicologicamente. Riscos que "valem para vítimas e homicidas". "A paciência para com o outro esvaiu-se", declara quem conclui que "a vida se torna um beco sem saída" para as pessoas "sem apoio de saúde mental, sem mais ninguém com quem partilhar os dramas quotidianos".
Crítica à Ordem dos Psicólogos
O psicólogo forense Rui Abrunhosa Gonçalves não descarta a possibilidade de os homicídios registados entre julho e agosto não passarem de "uma coincidência". Encontra, porém, aspetos comuns a todos os crimes, nomeadamente "as dificuldades económicas geradas pela crise que estamos a viver, a falta de apoios sociais e familiares e o isolamento social destas pessoas", que podem sustentar outra justificação. "A limitação da liberdade na vida das pessoas, o facto de estas não poderem desenvolver as sua rotinas habituais e serem, em muitos casos, forçadas ao isolamento tem efeitos na saúde mental, que estão sobejamente comprovados", frisa.
Abrunhosa Gonçalves lamenta, aliás, que "entidades como a Ordem dos Psicólogos não tivessem capacidade de se fazerem ouvir para chamar a atenção para o grande risco para a saúde mental, quer em casos menores, quer no agravamento de patologias já existentes, que um estado de confinamento necessariamente produz".
Culpa do álcool
Mais crimes violentos com o calor
"O calor provoca excitabilidade nervosa em alguns indivíduos, a que acresce o consumo de álcool, que tende também a aumentar". A constatação é feita por Rui Abrunhosa Gonçalves, que salienta que "há alguma ligação comprovada entre crimes violentos e época estival". Este "é mais um facto a ter em conta" na análise aos quatro homicídios ocorridos entre julho e agosto", mas que para o psicólogo forense não teve o mesmo impacto que o agravamento dos problemas mentais fomentado pelo confinamento.
Fernando Almeida, psiquiatra forense, é mais um especialista a afirmar que "o homicídio, enquanto doença do encontro, é mais frequente nos meses de verão". Muito por culpa do consumo excessivo de álcool. Ressalva, contudo, que "o filicídio [assassinato de um filho], mas também o matricídio, têm singularidades que aconselham" a não seguir esta regra à risca.
Risco
Um novo confinamento pode ser dramático
Rui Abrunhosa Gonçalves e Carlos Poiares têm o mesmo receio: poderão ocorrer mais homicídios em contextos similares, se nada for feito para cuidar da saúde mental dos portugueses. "Essa probabilidade é real se não for feito um rastreio adequado por parte das entidades competentes sobre as situações de risco associadas a problemas de toxicodependência/alcoolismo e de descompensação mental, sem correspondentes mecanismos de acompanhamento e controlo", antevê Abrunhosa Gonçalves. Ainda segundo o professor da Universidade do Minho, mesmo sendo "casos extremos", "se o apoio psicossocial continuar a ser ignorado e se se der um novo confinamento, algumas situações semelhantes são passíveis de ocorrer".
"Se o quadro de saúde mental dos portugueses é pobre em tempos não pandémicos, o isolamento veio necessariamente agravar a situação, seja em desemprego ou lay-off", complementa Carlos Poiares, que antecipa, igualmente, "o aumento das patologias aditivas, em especial do álcool, das drogas ilícitas, do jogo, das dependências eletrónicas, num quadro de severização".
Instabilidade
Terrorismo laboral perturba saúde mental
Para o vice-reitor da Universidade Lusófona, o "terrorismo laboral" evidenciado pelo discurso patronal, que enfatizava "o recurso ao lay-off ou a pressão para o Governo pagar tudo", causou "desestabilização em quem vive do salário". "A saúde mental arrisca muito nestas situações", diz.
Neste quadro, Carlos Poiares propõe que "o dinheiro da União Europeia também seja aplicado fortemente na criação de recursos humanos no campo da saúde mental". "Esta tem de ser a aposta do Estado, ao nível dos dispositivos públicos. Tem de se definir uma política pública de promoção da saúde mental em todos os quadrantes, da justiça à educação, do mundo do trabalho à segurança", defende.
Casos mortais
5 de julho
Matou filho autista
Eduardo José, de 17 anos, sofria de autismo, mas era um adolescente calmo, que frequentava uma escola de ensino especial, em Vinhais. Quando o estabelecimento de ensino encerrou devido à pandemia, Eduardo ficou violento por ter perdido as rotinas e começou a ameaçar a mãe. Sozinha, Fátima Martinho aguentou até ao limite, mas acabou por empurrar o filho para a morte. Ainda tentou atirar-se para o mesmo poço, sendo impedida por um familiar.
23 de julho
Suicídio após matar filha
Adélia Viana, de 72 anos, matou a filha com um cocktail de medicamentos dissimulado numa bebida. A mesma bebida que ingeriu, na casa de Moreira da Maia, para se suicidar, por não aguentar mais a pressão exercida por Manuela. De 42 anos e com uma doença mental, esta mulher exigia dinheiro à mãe para os vícios.
30 de julho
Asfixiou mãe idosa
Sofia Tavares, 48 anos e também com problemas do foro psicológico, asfixiou a mãe, de 82 anos, até à morte. Depois, andou 15 dias a gastar o dinheiro que a idosa acumulou, até confessar à PSP que o cadáver da mãe continuava intacto num apartamento de Vilar de Andorinho, em Vila Nova de Gaia, onde ambas residiam. Só nessa ocasião é que se descobriu que os constantes conflitos entre mãe e filha tinham terminado de forma fatal.
3 de agosto
Progenitora morreu à fome
Isabel Velez, 82 anos, foi encontrada morta, na cama da sua residência em Grândola, pelos bombeiros. Estava subnutrida e com sinais de violência após ter sido abandonada à fome e à sede pelo filho. Segundo a Polícia Judiciária, o homem, de 53 anos, assistiu "impávido" ao degradar do estado da progenitora, "até à falência total dos órgãos vitais". Quando foi detido, estava apático e com sinais de desequilíbrio mental.